“Meu amor, acho que chegou a hora. Eu vou morrer agora”. Esta foi a singela frase que dirigi à minha namorada no auge daquela
bad trip. Estávamos caminhando pelo deserto, no estado de Nevada, sob o sol escaldante do meio-dia, à procura do meu carro. Voltávamos de uma festa rave chamada
Dune, onde me empanturrei de um coquetel de drogas que por pouco não transformou meu cérebro em patê.
A rave aconteceu em algum final de semana do verão norte-americano de 1998. Naquela época, eu ganhava a vida entregando comida chinesa em Beverly Hills e minha namorada, Christianne, trabalhava no caixa de um restaurante caribenho do bairro de Santa Monica, Los Angeles, onde morávamos havia pouco mais de um ano. Dividíamos um simpático apartamento de três quartos – que ficava pertinho da praia - com Gustavo, um amigo carioca, e Mandeep, um indiano viciado em música eletrônica que fora criado na Inglaterra. Foi dele a idéia de irmos à festa no deserto.
Eu não era nenhum fã de música eletrônica e nunca havia estado numa rave, mas a idéia de uma festa no meio do deserto, e regada a LSD, seduziu meu espírito inconseqüente que acabara de completar vinte anos de existência sobre a face da Terra. Portanto, no sábado, após um almoço à base de burritos mexicanos, entramos no meu Ford Festiva vermelho (idêntico ao Fiat Uno brasileiro) e caímos na estrada. Eu, Chris, Gustavo, Mandeep e Vanessa, nossa vizinha nativa da Califórnia.
Foram mais de cinco horas de viagem até a fronteira do estado de Nevada. O cenário era deslumbrante e o astral da tripulação o melhor possível. O clima era de aventura e penetramos o deserto ao som de The Doors, numa consciente perseguição do clichê. Com as janelas fechadas, os incontáveis baseados de
skunk transformaram o interior do Ford numa sauna enfumaçada. Mal consegui enxergar a placa que anunciava a chegada à reserva indígena onde se consumaria a famigerada rave.
Mas bastou seguirmos o comboio de automóveis que se formou naquele ponto e, em vinte minutos, chegamos ao local do evento. Estacionamos o carro a cerca de um quilômetro da festa e começamos a andar em sua direção. No meio do caminho, uma dupla de malandrecos latinos ofertava a plenos pulmões: “Ácido! Ácido! Quem vaaai?”. E eu fui. Eu e Gustavo. Nós, que estávamos acostumados a pagar trinta reais por um quadradinho de papel de ácido no Rio de Janeiro, topamos a barganha na mesma hora.
Os caras carregavam o LSD puro em pequenos vidros de colírio e cada gota custava três dólares. Bastava colocar a língua para fora e eles pingavam o alucinógeno sobre ela. Tomei uma gota. O Gustavo, duas. O resto do pessoal foi menos ansioso e preferiu esperar. O Mandeep já havia sumido pelo deserto. Ele era enturmado com os organizadores do evento e correu ao encontro dos amigos ravers assim que desceu do carro, prometendo nos encontrar mais tarde.
Quando chegamos ao local exato da rave, finalmente percebi a dimensão do negócio. O lugar era de uma beleza arrasadora e dez mil pessoas de todas as raças e idades quicavam ao som da batida repetitiva do
techno. A área tinha mais ou menos o tamanho de um campo de futebol oficial e era circulada por montanhas de areia fina que faziam jus ao nome da festa:
Dune (duna). Uma visão do outro mundo. O caos e a esbórnia haviam se instalado sobre a sílica do oeste americano.
Escalamos uma das dunas para obter uma visão mais ampla da folia modernosa e ficamos ali abraçados por um tempo, eu e Chris. Eu tomara o ácido havia quase uma hora mas a onda insistia em não bater. Então ela me disse que queria experimentar
ecstasy. Ok. Vamos nessa. Eu já estava mesmo desconfiado da potência do ácido que os latinos haviam me vendido, e decidi acompanhá-la no comprimido branco de
Mitsubishi que tinha até a logo da fabricante japonesa impressa em relevo. Compramos as balinhas ali mesmo, por dez dólares cada, das mãos de um conhecido nosso de Los Angeles chamado Oliver, que freqüentava nossa casa esporadicamente para filar cervejas.
Dez minutos depois, Chris estava vomitando sobre a areia. Era uma reação típica de iniciantes do
ecstasy. Segurei sua mão enquanto analisava o líquido que ela havia expelido do estômago. O vômito dela se arrastou por entre os pedregulhos feito uma cobra vadia. A consistência e as cores metálicas do fluído me fizeram perceber que a jornada psicodélica havia começado. Pronto, eu estava louco e a sensação era maravilhosa. Nem esperei ela limpar a boca. Agarrei-a pela cintura e lancei-lhe um beijo de língua demorado.
Depois do beijo, fomos procurar o Gustavo, que havia sumido. Avistamos o cara no pico de uma duna vizinha, a poucos metros dali. Estava sozinho, de cócoras e sacudindo a cabeça ao ritmo da música. Chegamos até ele e notei, no instante em que ele se virou para nos saudar, que suas pupilas estavam altamente dilatadas. Era outro insano na noite fria do deserto. Acendemos mais um baseado e nos abraçamos, os três. Lembro de olhar para o Gustavo e dizer: “Eu te amo”. E ele me devolveu a sinceridade com a mesma frase. A Chris, que contemplava a cena com os olhos cheios d’água, não resistiu e entrou no clima: “Eu também amo vocês!”.
Descemos para nos misturar com a multidão e entrar na dança. O
ecstasy é uma droga sintética que induz o indivíduo a uma sensação de euforia e bem-estar. Aliado ao
trance (transe, em português), um estilo mais suave de música eletrônica, fez a nossa cabeça durante horas. As melodias progressivas e as batidas que emanavam das caixas de som de três metros de altura nos hipnotizaram. A nós e a todos ao nosso redor. Estava tudo lindo, no maior clima de paz e amor. Olhei para as dunas e descobri que as montanhas de areia também estavam dançando. Literalmente.
Uma mulher completamente nua, coberta apenas por um vestido de plástico transparente colado ao corpo, entrou na nossa roda distribuindo flores e cogumelos. Fiquei mirando os bicos dos seios amassados contra o plástico enquanto ela colocava um pequeno cogumelo ressecado na palma da minha mão. Mandei aquele fungo colorido pra dentro sem vacilar. Naquele momento, minha razão vagava por algum planeta distante e nem me dei conta da mistura química explosiva que eu estava fabricando.
Continuei encarando a mulher de plástico, que sorria e desejava paz a todos. Notei quando ela se dirigiu ao Gustavo e, encantada com o fato de sermos brasileiros, perguntou: “Como se diz
peace em português?”. Ao que ele respondeu: “Peace in portuguese is
foda-se”. E a palerma plastificada saiu dizendo “foda-se” para metade da festa na maior animação.
De repente, senti um corpo desabando sobre meus pés. Era um jovem gringo que se estrebuchava em convulsões. Reparei assustado que sua veia jugular estava roxa, inchada e enrijecida. Alguns segundos se passaram enquanto eu presenciava aquela bizarrice, até que finalmente alguém da organização do evento apareceu e puxou o sujeito para um canto. Aquilo era alguma espécie de overdose, e eu senti o primeiro calafrio.
O segundo veio quando começou a amanhecer. No escuro, não era possível perceber, mas com a luz do dia, reparei que os rostos das pessoas, inclusive o meu, estavam tensos e embranquecidos, cobertos de areia do deserto. Parecia que tínhamos envelhecido trinta anos. Aquela maquiagem natural deu a todos o aspecto de zumbis e a rave, que antes era uma festa cheia de vida, pareceu se transformar num culto misterioso às drogas e à música mecânica. E eu e meus amigos não fazíamos parte daquilo. O medo e a paranóia invadiram meus pensamentos. Começava ali minha primeira (e única)
bad trip - a expressão universal designada para sensações físicas e psicológicas cabulosas provocadas pelo uso excessivo de drogas.
Em seguida, fomos caminhar pela areia e esbarramos no corpo do Mandeep, estatelado no solo com um lenço cobrindo seu rosto. Congelei com aquela visão. Concluí que ele estava morto e entrei num processo silencioso de pânico. Percebendo a minha consternação, o Oliver, que estava por perto, aproximou-se e tentou me acalmar. Ele explicou que aquilo era normal e que o Mandeep havia apenas tomado muito
G – um líquido salgado, muito popular entre os ravers, e que mais tarde descobrimos tratar-se de uma bomba de hormônios. Segundo Oliver, ele estava "apenas" desmaiado e o lenço sobre o rosto era para proteger contra a luz do sol.
Pra mim, foi a gota d’água. O pessoal também sentiu o clima mórbido que havia se instalado e resolvemos cair fora dali. No caminho até o carro, eu estava num estado de choque que inspirava a preocupação dos amigos. É difícil traduzir em palavras a onda errada em que eu me encontrava. Lembro de apertar com força a mão da minha namorada enquanto marchava pelo deserto num pesadelo acordado que eu acreditava ser a realidade. Ao mesmo tempo, eu devorava uma garrafa de água mineral na tentativa de recuperar os sentidos.
Minha sensibilidade havia aflorado de tal forma que eu realmente acreditei quando a Vanessa me disse: “Não beba tanta água. Você vai acabar se afogando”. Sei que a intenção dela era a melhor possível, mas ao ouvir estas palavras, me joguei no chão da estrada e achei que estava de fato me afogando. Foi então que disse a Christianne que minha hora havia chegado. Senti que a morte estava me vigiando de perto, numa ronda macabra. Mas acho que ela decidiu me dar uma colher de chá, pois consegui me levantar e caminhar até o carro.
Chegamos em casa e eu passei dias me recuperando. Não falava com ninguém e fiquei uma semana sem ir trabalhar, achando que nunca mais voltaria ao normal. A intensidade daquela experiência no deserto me causou um impacto tão profundo que até hoje, dez anos depois, recuso qualquer tipo de substância alucinógena ou droga sintética. Prefiro ficar na cerveja e nos eventuais baseados. Nunca mais fui a uma rave. E nem pretendo. Aliás, alguém deveria criar a rave do funk, movida a James Brown, Matata, Rose Royce, Kool & The Gang, Sly Stone e cia. Ninguém precisaria de
ecstasy para dançar até o amanhecer.
Apesar dos horrores descritos acima, não renego os experimentos entorpecidos da minha juventude. Tive incontáveis viagens válidas - inclusive esta
bad trip - que contribuíram para um maior conhecimento das minhas questões existenciais e espirituais. Por isso mesmo, recomendo a qualquer pessoa pelo menos uma experiência alucinógena na vida.
Zé McGill* Encontrei no Youtube um vídeo da festa Dune, de 1999 - um ano após a nossa. Até a mulher de plástico aparece. Confiram: http://www.youtube.com/watch?v=E2C7eK46B-k