quinta-feira, 30 de abril de 2009

FALE A COISA CERTA


Se eu tivesse um ponto de escuta instalado no ouvido vinte e quatro horas por dia, o mundo seria meu. Com ajuda do ponto, eu falaria a coisa certa, sempre. E, falando sempre a coisa certa, o sujeito consegue o que quiser na vida. Conquista a mulher que desejar, consegue o emprego que almejar e, se quiser, vira até presidente da República. Basta dizer a coisa certa. Isto é: dizer o que os outros querem escutar.

Do outro lado do meu ponto de escuta, num quartinho enfumaçado e mal iluminado, uma equipe de apoio estaria sempre a postos: psicólogo, psiquiatra, historiador, filósofo, tradutor de vários idiomas, piadista, canalha, boçal... A fauna toda. Cada um seria acionado para soprar o discurso certo na minha orelha no momento adequado. Se eu me sentasse à mesa de um bar com um idiota, o boçal assumiria o comando do outro lado do ponto para nivelar a conversa. Se travasse discussão com uma intelectual pedante, teria o suporte do filósofo para explicar que a vida não é somente aquilo; do historiador, para provar que os antepassados dela também erravam; e do canalha, pra fingir que estou muito interessado no papo dela. E assim por diante.

A filosofia do “Fale a coisa certa” assombra os meus pensamentos há algum tempo. Mas foi na semana retrasada, ao assistir pela primeira vez o clássico Muito além do jardim (1979), com Peter Sellers, que a ficha finalmente caiu de vez. O filme conta a história de um jardineiro chamado Chance (Sellers) que, após a morte de seu patrão, é obrigado a deixar a casa onde trabalhou a vida inteira. O sujeito, um semi-retardado que nunca havia colocado os pés fora de casa e só conhecia a vida através da televisão, dá de cara com um mundo desconhecido e hostil: as ruas de Washington DC.

Logo na primeira noite, Chance é atropelado por uma madame (Shirley MacLaine) que, por medo de ser processada, decide levar o infeliz para sua mansão a fim de cuidar do ferimento causado no acidente. A simplicidade do protagonista – que acaba sempre falando a coisa certa, mesmo que por acaso – começa a abrir portas. Tudo o que ele fala é relacionado à jardinagem, mas as pessoas em sua órbita atribuem suas supostas metáforas a uma sabedoria profunda. Em pouco tempo, a madame está apaixonada por ele e seu marido, o milionário dono da mansão, o adota como confidente.

Num determinado momento do filme, o presidente dos EUA faz uma visita ao milionário, que era uma espécie de consultor seu. Na ocasião, Chance é apresentado ao presidente, que lhe pergunta algo como: “O que você faria para resolver o problema da nossa economia?”. Atrapalhado, o jardineiro responde o seguinte: “Enquanto as raízes estiverem sólidas, tudo estará bem no jardim”. O presidente, que nem era o Bush, fica impressionado com aquela “sacação” e divulga o “conselho” de Chance para toda a imprensa. No final, chegam mesmo a cogitar a candidatura do jardineiro à presidência dos Estados Unidos! Só porque ele falou as coisas certas nas horas certas.

Falar a coisa certa é, no entanto, relativo. Relativo porque o impacto causado pela fala depende do estado de espírito, do grau de instrução e das necessidades a serem preenchidas no âmago do interlocutor. Mas tenha certeza: sempre existirá a coisa certa a ser dita. Sempre. Mesmo que a coisa certa seja uma mentira ou uma contradição às suas ideias. E mesmo que você não queira dizer a coisa certa.

Aliás, se eu soubesse escrever a coisa certa o tempo todo, a Revista Foda-se causaria um frenesi universal, uma pandemia literária descontrolada. Mas como não tenho essa competência e nem um ponto de escuta no ouvido, me contento em escrever e falar a coisa relativamente certa de vez em quando. E viva o Brasil...

Zé McGill

ps - O texto acima é baseado na música Fale a coisa certa, de Zé McGill. Clique aqui para escutar a música no MySpace. A gravação é no esquema caseiro total, voz e violão, mas dá pra ter uma noção...


* Sly & The Family Stone tocando a coisa certa...

sexta-feira, 17 de abril de 2009

SERGIPANO - CAPÍTULO 2


SERGIPANO – CAPÍTULO II
(Domingo, 19 de abril de 2026)

O time do Flamengo, que jogava no clássico esquema 4-4-2, pisou no gramado do Maracanã com: Murillo; Ambrósio, Jorjão, Joaquim e Tuca; Pardal, Tomás, Paulinho Lambreta e Almeida; Tião e Zé Pedro. Sergipano, mesmo desfigurado, ficou no banco de reservas. Sobre o supercílio direito e a canela esquerda, pedaços generosos de esparadrapo branco. Heleno Vianna, o treinador, não sabia se poderia de fato contar com o atacante, mas preferiu tê-lo à disposição, apesar de deixar claro seu repúdio ao comportamento irascível do jogador. As câmeras de TV focalizavam Sergipano a cada dez minutos: expressão séria, os olhos verdes fixados na bola, que vadiava pelo campo. Registraram o momento em que ele socou o teto do banco de reservas, logo aos sete minutos de jogo, quando o centroavante do Botafogo, Pereira, abriu o placar numa jogada de bola parada.

Sentado ali, no banco de reservas, Sergipano sentia uma dor aguda na canela ferida e sofria desde a véspera com uma enxaqueca grave, causada pela segunda pancada, aquela que o norueguês lhe aplicara na nuca. Na metade do primeiro tempo, fechou os olhos com força, numa reação às dores, e aspirou o ar pelo nariz. Começava a chover no Maracanã e o cheiro de grama misturado ao cheiro de água da chuva provocou no Sergipano uma sensação que unia prazer e ansiedade. No minuto seguinte, levantou-se do banco. Passou o resto do primeiro tempo de pé ao lado de Reginaldo, o lateral reserva, e amigo predileto do Sergipano entre os jogadores do elenco rubro-negro; era um mulato franzino e extrovertido formado nas categorias de base do clube, assim como a grande maioria da equipe. Entre os jogadores, Reginaldo era carinhosamente chamado de “Pereba”.

Quando o juiz decretou o final do primeiro tempo, o placar ainda apontava 1 x 0 para o Botafogo. Sergipano caminhou até a escada do vestiário e começou a descer os degraus com certa dificuldade. Pereba ofereceu a mão ao amigo, que recusou ajuda. A torcida rubro-negra, que andava silenciosa naquela tarde de domingo, percebeu o sacrifício que fazia o seu camisa 11 e, num crescendo de arrepiar, começou a entoar o tradicional coro em reverência ao ídolo: “Vaaamos, Sergipaaano / Nós gostaaamos de você / Cooome mocotóóó / E bota pra foder!!!”. Aquilo mexeu com o brio do lagartense endiabrado. De repente, as dores sumiram e o abatimento deu lugar à fome de bola. Antes de descer a escada, olhou para arquibancada e fez um sinal para os torcedores, como se dissesse com a mão direita: “Me aguardem.”

Dentro do vestiário, Heleno Vianna estava inconformado:
“Se for pra continuar jogando desse jeito é melhor nem voltarmos pro segundo tempo. Vamos ficar por aqui mesmo. O vestiário tá bonito, foi reformado...”
Almeida, o capitão do time, pediu a palavra: “Professor, não tá dando pra jogar pelo meio. Precisa abrir o jogo pelas pontas: o lateral deles é fraco.”
Sergipano, que era desafeto declarado de Almeida, notou o olhar que este lhe direcionou enquanto falava com o treinador. Sergipano era ponta-esquerda e sabia que o recado era para ele. Mas Vianna rebateu com ironia:
“Pois é, meu filho. Eu sei disso. Todo mundo sabe disso. Mas olha aí o estado do nosso ponta valentão...”, mostrando o ferimento na perna do Sergipano.
Na mesma hora, o camisa 11 arrancou o esparadrapo da canela e deu uns tapas sobre o machucado: “Tô bom, já. Olha aí, não estou sentindo mais nada. Heleno, eu sei que fiz merda, mas deixa eu entrar nessa porra que eu vou pra cima deles!”
“Você não consegue nem andar direito, seu aloprado...”, respondeu Vianna, desanimado.
O médico do Flamengo, Dr. Célio Ribeiro, tratou de interromper: “Se entrar, eu não me responsabilizo! Esse cara não devia nem estar no banco”, disse, irritado.

O técnico rubro-negro era vaidoso, mas não orgulhoso. Aos 58 anos de idade e com larga experiência acumulada em quase duas décadas de carreira, sabia que precisava do Sergipano para virar aquele jogo. Por isso, decidiu acabar com o castigo e, assim que o doutor saiu de perto, mandou chamar o jogador para uma conversa particular num canto do vestiário: “Meu filho, cá entre nós, eu estou cagando para o que o doutor diz. Se deixar, ele veta até jogador com dor de corno. O que eu quero saber de você é o seguinte: tu se garante?”, perguntou Vianna, testando a determinação do seu ponta.
“Eu me garanto! O machucado tá feio, mas não quebrei nada. É decisão, Heleno. Depois desse jogo eu fico no sofá o tempo que o senhor quiser. Mas hoje, me deixa ir pro jogo que a torcida já tá gritando o meu nome lá fora. Além do mais, o Maguila guardou a minha marmita de sopa de mocotó. Vou dar umas colheradas e entrar no maior gás!”, afirmou, elétrico.
“Tudo bem. Mas vê lá, hein, rapaz. Você não é o marinheiro Popeye. Vai pra cima, mas vai com calma. E se sentir dor, me avisa logo. Vai pro jogo!”. E assim o treinador avisou ao time que Sergipano estava entrando para o segundo tempo no lugar de Zé Pedro. Todos, exceto Almeida, fizeram questão de demonstrar satisfação com sorrisos e gritos de incentivo.

Antes de subir para o campo, Sergipano pediu a Maguila, o roupeiro, que esquentasse a sopa no forninho de microondas. Enquanto esperava, abriu sua mochila e sacou um embrulho de plástico que continha pequenos pedaços de pimenta malagueta verde, o tempero que usava na sopa de mocotó. Retirou um pedaço do embrulho e guardou a pimenta dentro do punho cerrado. Cinco colheradas da sopa foram suficientes para que ele enchesse o peito de confiança. Em seguida, subiu a escada do vestiário e se posicionou no gramado sem retribuir o calor da torcida, que estava eufórica com a entrada do ídolo e agora confiava na virada. A chuva apertou.

No momento em que a bola rolou, Sergipano logo descobriu que o ferimento na canela incomodaria. Mas recebeu o primeiro passe de Almeida e devolveu rapidamente, criando a tabelinha. Almeida, o camisa 10 que gastava habilidade, chutou rente ao travessão. E os gritos das arquibancadas já ameaçavam estourar os tímpanos alheios.

Enquanto o jogo seguia, Sergipano espremia entre os dedos o pedaço de pimenta que trouxera do vestiário. No primeiro escanteio a favor do Flamengo, ele se fingiu de morto e estacionou ao lado da trave direita do goleiro do Botafogo, Henriques. Sabia que Almeida cobrava os escanteios mirando a marca de pênalti, para facilitar a cabeçada dos zagueiros rubro-negros, que eram bons nas jogadas aéreas. Sabia também que Henriques teria que sair do gol para tentar a defesa. Quando a bola saiu dos pés de Almeida e a movimentação começou dentro da área, o Sergipano, da maneira mais rápida e discreta que pôde, esfregou os dedos apimentados nos olhos do goleiro, no exato momento em que este subia para tentar a defesa. Logo em seguida, o camisa 11 lambeu os próprios dedos, na intenção de destruir a prova do crime. Ninguém dentro do estádio viu a traquinagem. Nem o juiz, nem os bandeirinhas, nem os outros jogadores. O próprio Henriques, só percebeu a ardência nos olhos durante o salto, quando a bola já estava praticamente na cabeça do zagueiro Jorjão. Gol do Flamengo. Jogo empatado.

A televisão mostrou seguidamente o replay do momento exato em que Sergipano levava os dedos aos olhos do goleiro no meio da confusão da pequena área. Mas no campo, o único a descobrir a traquinagem foi mesmo Henriques, que agonizava, jogado na grama. Indignado, o goleiro gritava: “Paraíba filho da puta! Tô cego, tô cego!”. Não demorou para que os jogadores do Botafogo tomassem conhecimento do ocorrido pela boca indignada do goleiro. Logo estava armado o tumulto. O capitão botafoguense, Mario Jorge, apontava para Sergipano e para Henriques, na tentativa de indicar ao árbitro o que havia acontecido. Sergipano foi obrigado a mostrar as mãos, que estavam limpas. Não havia prova de irregularidade. Nem mesmo os replays da TV conseguiram incriminar o atacante rubro-negro, conforme o veredicto que o inocentou no polêmico julgamento que se sucedeu à partida.

O jogo recomeçou após alguns minutos de paralisação. Aos 29, o lateral-esquerdo Tuca roubou a bola do atacante adversário e partiu em velocidade num contra-ataque em que havia dois defensores do Botafogo contra três atacantes flamenguistas. Tuca cortou para a direita e tirou um zagueiro da jogada. Sergipano, livre de marcação, levantou o braço pedindo o passe e recebeu a bola quase na meia-lua. Teve tempo de dominar e partir para dentro da área, mas foi impedido de chutar pelo carrinho certeiro de Henriques, que deslizou pelo gramado molhado e atingiu em cheio a canela contundida do atacante. Pênalti para o Flamengo.

Henriques foi expulso e Sergipano retirado de maca. O esparadrapo foi mais uma vez arrancado da canela do atacante e o sangue voltava a escorrer por ali. Do lado de fora do gramado, urrando de dor, ele assistiu à cobrança precisa da penalidade. Bola de um lado, goleiro reserva do outro. Sergipano estava fora de combate, mas o placar estava virado. Almeida não perdia pênaltis.

Revoltado, Henriques foi tirar satisfação com o Sergipano já fora do gramado. Maguila, o roupeiro, chupava uma laranja ao lado da maca em que o atacante estava estirado e foi logo se metendo entre os dois. O goleiro já chegava com o dedão da luva apontado para a cara de Sergipano, que o olhava com traços de deboche.
“Tu se acha malandro, né? Tu é safado!”, xingou o goleiro. “Tu é safado!”.
“Playboy frangueiro”, repetia o Sergipano.
Os dois já estavam cercados por repórteres e curiosos, mas continuaram a troca de ofensas sob a chuva de microfones. Um repórter de TV entrevistou Henriques, assim que conseguiram separá-los.
“Henriques, o que foi que aconteceu no lance do primeiro gol?”, perguntou.
“Esse safado... Não vale nada. Todo mundo sabe que ele joga sujo”.
“Mas o que foi que ele fez, Henriques?”, insistiu o jornalista.
“Na hora em que eu subi pra fazer a defesa, ele passou um sabão ou sei lá o quê nos meus olhos. Daí eu não consegui enxergar mais nada...” e saiu de cena resmungando.
O mesmo repórter procurou saber a versão do Sergipano.
“Sergipano, o Henriques disse que você esfregou alguma coisa nos olhos dele no lance do primeiro gol, é verdade?”
“Que nada. Todo mundo sabe que o Henriques é um chorão. O Botafogo já teve goleiros mais competentes, o Gonzaga, por exemplo”, retrucou, venenoso.

O Flamengo ainda marcou mais um gol, aos 43, em outro contra-ataque, desta vez puxado por Pereba, que entrara no lugar de Sergipano para segurar o jogo. O camisa 9, Tião, artilheiro do campeonato, completou de primeira o cruzamento rasteiro de Paulinho Lambreta. Flamengo 3 x 1 Botafogo, placar final. E a torcida flamenguista não se cansava de cantar o famoso coro em homenagem ao Sergipano, eleito herói do título: “Vaaamos, Sergipaaano / Nós gostaaamos de você / Cooome mocotóóó / E bota pra foder!!!”.

Zé McGill

* O vídeo dessa música estava no Youtube mas parece que mandaram tirar do ar... Só de pirraça, com vocês: Stretch - Why did you do it?