domingo, 28 de junho de 2009

LATIN GOES SKA


O negócio é o seguinte: nesta resenha, vou usar a palavra CLASSE repetidamente. Porque um show dos Skatalites é isso: classe. E não há sinônimo que substitua “classe” à altura.

Esperar que os Skatalites – banda fundada em 1962 – se apresentassem com o vigor que se percebe em álbuns como Stretching Out (um clássico do ska, de 1986) seria covardia. Afinal, metade da banda já ultrapassou a casa dos 60 anos de idade. Por outro lado, a falta de fôlego (flagrante em alguns momentos) foi compensada com doses generosas de classe, muita classe, no histórico show que passou pelo Rio de Janeiro, na última sexta-feira (05/06/09), no Circo Voador.

Mas não confunda falta de fôlego com falta de energia. Até porque os coroas do grupo (Lloyd Knibbs – bateria, Lester Sterling – sax alto, Cedric Brooks – sax tenor, e a cantora Doreen Schaffer) andam muito bem acompanhados por uma moçada que esbanja jovialidade no palco. E por falar em boa companhia, os jamaicanos acertaram também na escolha do Canastra, banda carioca que fez mais do que um simples show de abertura.

O bailão caribenho dos Skatalites foi inaugurado com “Freedom Sounds” e “Occupation”, dois clássicos do repertório deles, que serviram como aviso de que o negócio seria sério. Logo de cara, percebe-se que o coração da banda é mesmo o paredão indigesto de metais (dois saxofones + trompete + trombone). Sterling e Brooks, sempre no centro do palco, entram juntos num estado de torpor que dá gosto de ver. Os velhinhos ficam imóveis, tocando de olhos fechados, enquanto o resto da banda e o público ululam radiantes ao redor. Coisa fina. Classe.

E se os metais são o coração dos Skatalites, bateria e guitarra são o pulmão. Knibbs (o Charlie Watts do ska!) não ataca mais com a vitalidade do passado, as viradas de bateria são mesmo raras, mas é ele quem dá as cartas do ritmo. Ele e o guitarrista Devon James, que tem um ar quase blasé, quase preguiçoso, mas uma mão direita nervosinha que só ela. Mão direita que ficou em evidência em “Simmer Down”, por exemplo.

Outros clássicos skatalaitianos como “Guns of Navarrone” e “Eastern Standard Time” não poderiam faltar. E não faltaram, mas foi em “Latin Goes Ska” que o Circo Voador quase levantou voo de verdade. Uma galera que dançava em frente ao palco na maior animação não se conteve: começaram a subir no palco, um de cada vez, em total harmonia, pra dançar com a banda. E Lester Sterling, um dos membros originais do grupo (ao lado de Knibbs e Schaffer), aprovou a bagunça, com muita classe.

Agora, classe mesmo é com a tal da Doreen Schaffer. Ela participou de menos da metade do show, mas quando cantou, foi com elegância extraordinária. O que mais rola pelo mundo é banda de reggae fazendo aquele sonzinho palha (tomemos “palha” por antônimo de classe, ok?), sem vergonha mesmo. E quando a gente testemunha uma cantora como Doreen e uma banda como os Skatalites tocando reggae como fizeram no meio do show, soa um alarme lá na parte de trás da cabeça.

Enquanto assistia ao show, fiquei tentando achar defeitos ou imperfeições para que esta resenha não soasse como rasgação de seda de fã. Mas não achei nada. O único senão do show ficou por conta das falhas no P.A., que tentaram mas não conseguiram tirar o brilho dos solos de trombone de Vin Gordon, que por vezes remetiam ao canto de uma baleia assassina no fundo do oceano.

E também tem o seguinte: esse papo de imparcialidade jornalística vira conversa pra boi dormir quando se escreve sobre o show de uma banda como os Skatalites, criadores de um ritmo que deu origem ao reggae de Bob Marley, e que nunca haviam se apresentado no Rio de Janeiro. Às vezes, é preciso gritar para que as pessoas entendam: FOI HISTÓRICO!

Zé McGill


** Saiu também no blog oficial do Circo Voador. Valeu, Lencinho!

*** Foto de Tiago Chediak.

****Latin Goes Ska @ Circo Voador!!!


segunda-feira, 22 de junho de 2009

CHOLITA COCHABAMBA


Segue abaixo conto curto escrito a partir da foto acima.

CHOLITA COCHABAMBA

Peguei o Trem da Morte em Corumbá, numa manhã de quarta-feira. Meu destino era a cidade boliviana de Cochabamba, onde Ramon me aguardava com o material. Para chegar até lá, eu deveria descer do trem em Santa Cruz de La Sierra e de lá tomar um ônibus para o destino final. Tive que aturar vinte horas dentro daquele vagão bodoso, entre as cholas que vendiam limonada em saquinho e as galinhas histéricas. Sentada ao meu lado, uma personagem estranha achava graça do meu desconforto. Era uma anã boliviana, que se apresentou como “Cholita Cochabamba, atriz y vendedora de limonada nas horas vagas”.

- Ah... Cochabamba, si? Yo estoy indo para allí, disse, caprichando no meu portunhol.
- Que bueeeno! Puedes quedarse en mi casa, si quieres, respondeu a anã.

A simpatia gratuita de Cholita me pegou desprevenido. E apesar de ter dispensado polidamente o convite, percebi que a pequena boliviana não pararia de falar. Desandou a contar a história de sua vida. Falou sobre a infância alegre em Cochabamba, relatou episódios que evocavam o preconceito contra sua estatura e, em determinado momento, chegou a dizer que a única parte de seu corpo que não lhe agradava eram os seios, muito pequenos para o gosto dela. Se não me engano, foi justamente na hora em que ela falava sobre os seios que notei que o Trem da Morte estava parando.

Olhei pela janela do vagão e reparei um movimento suspeito do lado de fora. Cholita, que não era passageira de primeira viagem, avisou que tratava-se de uma quadrilha peruana, a mesma que assaltara o trem semanas antes. Na mesma hora, peguei minha maleta e apertei-a contra o peito. Percebendo minha aflição, Cholita sugeriu sentar-se sobre a mala, criando assim o disfarce. E eu agradeci. Sabe-se lá o que aconteceria caso os peruanos descobrissem o conteúdo da maleta...

Mas deu tudo certo. Cheguei à Cochabamba no dia seguinte, acompanhado da anã boliviana. Nos despedimos calorosamente num ponto de ônibus tumultuado e fotografei a pequena com seu container vermelho de limonada. Ela me pediu que lhe mandasse a foto pelo correio assim que chegasse ao Brasil. E foi o que fiz. Inclusive, usei o Photoshop para presentear Cholita com um avultado par de seios. Acho que vou visitá-la no verão.

Zé McGill

* Steve Miller Band, The Joker. Coisa fina!

quarta-feira, 10 de junho de 2009

AFROBEAT NO GO DIE!


Na última sexta-feira (dia 05 de junho), saiu no Rio Fanzine (Rio Show - O Globo) um texto meu sobre o afrobeat. Muito legal! Mas cortaram um bocado do texto, já que a prioridade era da lenda jamaicana Skatalites, com toda razão. Afinal, quem é Zé McGill comparado aos reis do ska?!

Enfim... segue abaixo o meu texto na íntegra, pra quem quiser dar um confere. Para ler a versão publicada n' O Globo, basta clicar na imagem acima.
E a festa MAKULA do dia 06 foi histórica! Confira algumas das fotos do bailão africano no www.myspace.com/festamakula

---------------------------------------------------------

Escutei Fela Kuti pela primeira vez em 1997, eu acho. Lembro que era final de tarde de verão, em Los Angeles, e um amigo brasileiro que morava comigo me apresentou aquele CD cuja capa trazia estampada a figura de um babuíno meio sinistro. Era o disco Gentleman (1973) e a primeira música que rolou tinha o mesmo nome. Naquela época, eu escutava muito Pixies e Jane’s Addiction e não tinha muita paciência com o que não fosse rock. Quando meu amigo disse que o tal Fela Kuti era da Nigéria, quase pedi a ele que deixasse pra botar o disco numa outra hora. Mas aí a música começou. E entrou uma batida de percussão que lembrava samba, umas notas graves no teclado e um saxofone demente. Legal, mas nada que não me fizesse querer colocar de volta o disco dos Pixies. Só que, lá pelo segundo minuto da música, quando entraram juntos o baixo e a bateria, ingressei numa espécie de transe. Senti a parede do apartamento tremer e o cheeseburger que eu havia almoçado revirar dentro do meu estômago. Saca aquelas músicas que te ganham logo na primeira audição? Pois é...

Alguns anos mais tarde, já no Brasil, comecei a pesquisar sobre o afrobeat, gênero criado pelo Fela, que une o groove do soulfunky do James Brown à liberdade criativa do jazz, assim como a elementos propriamente africanos e também ao vigor do rock, ele mesmo. Fui caçar aquele som que eu havia escutado em “Gentleman”. Descobri outros nigerianos como Orlando Julius, Tony Allen, Joni Haastrup e The Funkees. Todos contemporâneos da melhor fase do Fela, nos anos 70. E me dei conta de que havia esbarrado com o afrobeat justamente no ano da morte de seu criador. Fela Kuti morreu naquele ano de 1997, quando eu só escutava rock e comia cheeseburger em Los Angeles. Por algum tempo, lamentei ter chegado tarde demais à África.

Acontece que o tempo passou e surgiu na internet o MySpace. Ali, tomei conhecimento da sobrevivência do afrobeat pelo mundo. Ouvi o som de big bands surgidas já no novo século como Nomo (de Michigan), Afrodizz (Montreal), Fanga (Montpellier) e JariBu (Tóquio!). E fiquei sabendo que existem duas cenas em ebulição no orbe terrestre: Nova Iorque, com bandas como Antibalas, Akoya e Kokolo, e Londres, com Dele Sosimi e Inemo, entre outras. Algumas paqueram o jazz, outras flertam até com o hip hop e muitas são compostas por integrantes não-negros. Mas aquilo que o mestre Fela ensinou, inclusive o discurso politizado, está quase sempre ali, na base de tudo. Ou seja, o afrobeat não apenas sobrevive, mas está se espalhando pelo mundo com grau de alcance parecido com o de uma pandemia incontrolável.

Isso sem falar em Lagos, capital da Nigéria, onde os rebentos do Fela – Femi e Seun Kuti – mantém aceso o fogo do afrobeat em sua terra natal. No Brasil, já tivemos grupos como Afrika Gumbe e Obina Shok, cheios de elementos afro no som. E estão pipocando novas bandas nacionais (vide o MySpace) que colocam o afrobeat entre suas principais influências. Portanto, não se espante caso uma tsunami de afrobeat invada o Rio de Janeiro em breve. E não precisa esquecer o samba, a caipirinha, o rock e nem o cheeseburger. Mas chute a preguiça e o preconceito pra escanteio: ouça o som e tente não dançar. Afinal, carregamos no nosso background cultural mil e uma referências africanas. Ou não?

Zé McGill

* Pra não perder o hábito, segue videozinho cascudo da música "Yegelle Tezeta", de Mulatu Astatke (Etiópia), sobre animação da Disney...