quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

A VERDADEIRA HISTÓRIA DE UMBABARAUMA






O último registro do ano na Revista Foda-se tinha que ser especial. Mas aqui, não tem essa de retrospectiva, listinha, sapatinho na janela e nem promessas para 2009. Aqui, temos este roteiro maluco de ficção musical para um curta-metragem. Trata-se de um encontro imaginário entre aqueles que são, na nossa opinião, os maiores nomes da música na América do Sul, Caribe e África: Jorge Ben, Bob Marley e Fela Kuti, respectivamente. Lá vai...

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1. EXT. CATUMBI, RIO DE JANEIRO, 1972. ESTRADA DE TERRA. DIA.

FADE IN MÚSICA: ROOTS, ROCK, REGGAE - DE BOB MARLEY.

Os sapatos brancos de Jorge Ben levantam poeira em passos relaxados pela estrada. A câmera passeia verticalmente pelo corpo do violão que Jorge carrega pela ponta do braço, como se empunhasse um frango abatido pelo pescoço. Velhos, criancinhas e cachorros acompanham e saúdam o Babulina em sua caminhada em direção à birosca.

FADE OUT MÚSICA

2. INT. BIROSCA. DIA.

JORGE BEN
(sentando à mesa)
Ô Tião, serve aí aquele ovinho de codorna e uma Jurubeba.
Hoje eu tô inspirado, quero ir a um samba bem animado.

TIÃO
É pra já, Babulina!
Tu viu o golaço que o Fio marcou contra o Benfica?

JORGE BEN
(escancarando um sorriso)
Claro que vi, pô, só não entrou com bola e tudo porque teve humildade!

CORTE PARA A PORTA DA BIROSCA. Um anão negro e misterioso, de chapéu panamá, gravata florida e tapa-olho, está parado na porta. Ele se aproxima e deixa sobre a mesa um envelope branco. Sai de cena sem olhar para ninguém, sem falar nada. Intrigado, Jorge Ben abre o envelope e lê com atenção o conteúdo da carta.

CLOSE na última linha da carta: AGUARDO SUA VISITA EM LAGOS, NO DIA 31. VENHA SOZINHO. ASSINADO: FELA ANIKULAPO KUTI.


3. EXT. BECO ESCURO. KINGSTON, JAMAICA. NA NOITE DO DIA SEGUINTE.

FADE IN MÚSICA: SORROW, TEARS AND BLOOD - DE FELA KUTI.

Três pistoleiros negros, de dreadlocks, se reúnem no beco e entram numa kombi.

TRAVELLING LATERAL: a kombi roda pelas ruas escuras de Kingston até estacionar na porta de uma casa (o estúdio dos Wailers). Os homens descem do veículo, armados com suas pistolas.

FADE OUT MÚSICA.

4. INT. ESTÚDIO DA BANDA THE WAILERS. NOITE.

Câmera passeia pelo interior do estúdio enfumaçado. A banda ensaia a música Sun is shining. Foco em primeiro plano na guitarra de Peter Tosh. No segundo plano, Bob Marley, de headphones, canta atrás do vidro de aquário do estúdio. O ensaio é interrompido pelo estrondo causado pelo arrombamento da porta. Os pistoleiros invadem o estúdio.

PISTOLEIRO 1
(diálogo em inglês, sotaque jamaicano brabo)
Mister Marley, a propina está atrasada em mais de um mês.
E você sabe bem o que acontece quando atrasam a propina do homem.

BOB MARLEY
(ainda dentro do aquário)
Olha, diga ao homem que nós vamos pagar. Já disse que vamos pagar.
Nós não precisamos de mais problemas. A bilheteria do show de amanhã é dele.

PISTOLEIRO 2
É melhor que seja. Senão, pode dar adeus ao seu pequeno estúdio de merda.

CORTE PARA O PISTOLEIRO 3, que acerta um tiro no meio do amplificador de guitarra. Os pistoleiros batem em retirada. Na saída, o PISTOLEIRO 1 arranca um baseado da boca do percussionista Bunny Wailer. Bob Marley sai do aquário e junta-se aos músicos na sala principal. Ele enfia a mão no bolso e saca um punhado de erva.

BOB MARLEY
Alguém tem seda?

PETER TOSH
Nosso papel acabou. Aquele escroto levou o último.

BOB MARLEY
Merda, vou sair pra arrumar algum.

CÂMERA SEGUE MARLEY ATÉ A PORTA DO ESTÚDIO.


5. EXT. PORTA DO ESTÚDIO. NOITE.

Lá fora, encostado na parede, está o anão do tapa-olho, com a mão esquerda estendida no vão da porta, segurando um maço de papel de seda e olhando em direção à rua. Bob Marley agradece e observa o anão enquanto pega os papéis. Quando abre o maço de sedas, descobre a mensagem em letras garrafais. Marley procura o anão, que já desapareceu na escuridão.

CLOSE no papel de seda: AGUARDO SUA VISITA EM LAGOS, NO DIA 31. VENHA SOZINHO. ASSINADO: FELA ANIKULAPO KUTI.


6. EXT. AEROPORTO DE LAGOS, NIGÉRIA. DIA.

FADE IN MÚSICA: OS ALQUIMISTAS ESTÃO CHEGANDO - DE JORGE BEN.

O avião se aproxima da pista num dia de sol forte. Jorge Ben desce primeiro. Bob Marley surge na escada do avião após meia dúzia de passageiros.

CORTA PARA PORTA DO AEROPORTO.
Jorge Ben e Bob Marley estão no ponto de táxi do aeroporto. Cada um carrega uma mala e um instrumento. Ben traja uma camisa do Flamengo, Marley está vestido com a camisa da seleção brasileira de 1970. Eles se olham, mas não reconhecem um ao outro. Uma caminhonete bege estaciona na frente dos dois. Do banco do carona, salta o anão misterioso.

FADE OUT MÚSICA.

ANÃO MISTERIOSO
(em inglês)
Mister Bob Marley, entre, por favor.
(em português, sotaque angolano)
Senhor Jorge Ben, por favor.

Os dois músicos adentram a caminhonete, que dá a partida e ganha as ruas de Lagos.


7. INT. CAMINHONETE. DIA. CÂMERA COLOCADA SOBRE O FREIO DE MÃO DA CAMINHONETE FOCA A CONVERSA ENTRE MARLEY E BEN NO BANCO DE TRÁS.

JORGE BEN
(apontando para a camiseta amarela de Marley)
Mister Marley, véri naice camiseta, véri naice, mai frend!

BOB MARLEY
(em inglês)
Obrigado, Mister Ben. Sua música é linda e sua camiseta também...

JORGE BEN
I donti spik inglish, mai frend... véri naice, véri naice!

ANÃO MISTERIOSO
(traduzindo as palavras de Marley para Ben)
Ele disse que sua música é linda e sua camiseta também.

JORGE BEN
(para Marley)
Maravilha! Is Flamengo, mai frend, FLA-MEN-GO!

BOB MARLEY
(num português tosco)
Ahh! “Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa”…

JORGE BEN
Yes, yes, mai frend!
Ô, senhor Anão Misterioso, diz aí pra ele que lá no Brasil a gente adora aquele som que ele faz, o Réguis.

FADE IN MÚSICA: CONCRETE JUNGLE, DE BOB MARLEY.

CORTA PARA A CARA DE MARLEY, que sorri para Ben e depois começa a olhar as ruas de Lagos, cheias de miséria. CÂMERA ESTÁ COLOCADA NA PERSPECTIVA DE JORGE BEN, com o perfil de Marley em primeiro plano e a janela com as ruas de Lagos em segundo plano.

CORTA PARA A CARA DE BEN, compenetrado na pobreza da capital nigeriana. CÂMERA ESTÁ COLOCADA NA PERSPECTIVA DE BOB MARLEY, com o perfil de Ben em primeiro plano e a janela com as ruas de Lagos em segundo plano.

A caminhonete estaciona na porta do Afrika Shrine, o nightclub criado por Fela Kuti, que ficava na comunidade Kalakuta Republic, outra criação do Fela Kuti. Jorge Ben, Bob Marley, o motorista e o Anão Misterioso descem do automóvel e ficam parados na porta do nightclub.

FADE OUT MÚSICA.


8. INT. AFRIKA SHRINE. NOITE.

O interior do Afrika Shrine é escuro, iluminado apenas por luzes fracas de neon amarelo e vermelho. Fela Kuti está deitado no sofá, rodeado por oito mulheres negras de caras pintadas e os músicos de sua banda. Ben e Marley estão de pé, em frente ao sofá. O primeiro carrega o violão, o segundo tem uma guitarra. O som de fundo é o Afro-beat.

FELA KUTI
(em inglês; o anão traduz para Jorge Ben)
Mister Bob Marley! Mister Jorge Ben! Sejam bem-vindos!
Obrigado por aceitarem o meu convite. A comunidade da Kalakuta Republic está em festa pela presença dos maiores músicos das Américas. Chamei-os aqui porque a música de vocês é o que melhor representa a cultura africana pelo mundo. Eu ia chamar o James Brown também, mas descobri que ele é simpatizante do Partido Republicano e mudei de idéia. Nós precisamos colocar a música africana nos corações e nas mentes das pessoas e ninguém melhor do que vocês, negros descendentes do nosso continente, para levar esta missão adiante. Venham, tragam seus instrumentos e sigam-me.

CÂMERA SEGUE PELAS COSTAS OS TRÊS MÚSICOS. Eles se dirigem ao palco do Afrika Shrine, que já está tomado por uma dúzia de músicos de Fela Kuti, todos em suas devidas posições, prontos para tocar os instrumentos.

CLOSE no Anão Misterioso, que cochicha alguma coisa no ouvido de Fela Kuti.

FELA KUTI
(em inglês)
Alright, alright. Mister Marley, você primeiro. Sabemos que você aprecia as ervas e temos aqui uma nova música pra você. Chama-se African Herbsman. Aqui está a partitura. Tem um pedaço de letra e você pode completar. Vamos tocar?

BOB MARLEY
(isto não tem tradução à altura)
Of course, boss. Whatever you say. Let’s jam!

MÚSICA: AFRICAN HERBSMAN, DE BOB MARLEY.

A banda começa a tocar. Bob Marley e Fela Kuti cantam juntos. Jorge Ben observa de braços cruzados na frente do palco.
LEGENDA: A MÚSICA AFRICAN HERBSMAN DARIA TÍTULO AO NOVO DISCO DE BOB MARLEY, LANÇADO EM 1973.

FADE OUT MÚSICA.

CLOSE no Anão Misterioso, que novamente cochicha alguma coisa no ouvido de Fela Kuti.

FELA KUTI
(em inglês; o Anão traduz para Jorge Ben)
Jorge, agora é sua vez. Sei que você ama o futebol e temos aqui na Kalakuta Republic um atacante chamado Umbabarauma. Ele já marcou um milhão de gols pelo nosso time, que se chama Korokondô. Você pode fazer a letra em português, mas a base da música é esta aqui. (Fela Kuti toca no saxofone a linha de guitarra de Umbabarauma). Vamos tocar?

JORGE BEN
Ô, chefia... Você é quem manda. Vamo nessa!

Jorge Ben sobe ao palco e pede a guitarra de Bob Marley emprestada. Bob Marley vai para a percussão. As cantoras de Fela Kuti começam o coro de “Umbabaraumááá”. Todos começam a tocar!!!

MÚSICA: UMBABARAUMA, DE JORGE BEN.

LEGENDA: PONTA DE LANÇA AFRICANO (UMBABARAUMA) SERIA A PRIMEIRA FAIXA DO DISCO ÁFRICA BRASIL, LANÇADO POR JORGE BEN EM 1976.

FIM

FADE OUT MÚSICA.

CRÉDITOS.

MÚSICA: GENTLEMAN, DE FELA KUTI.

Zé McGill

*Se você ainda não conhece o som do Fela Kuti, eis aqui a sua chance de redenção:


quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

JÔNATAS PRECISA DE CARINHO


Adeus hexa, adeus Libertadores, adeus Caio Harry Potter Júnior. Olhei o Flamengo contra o Atlético Paranaense pela televisão no último domingo. Um olho brilhou de tristeza pela apatia e covardia do time, mas o outro brilhou diferente, aliviado com a saída iminente de um técnico que me causou um dos sentimentos mais esquisitos que existem: pena.

Quando li que Harry Potter admitiu ainda não ter encontrado a formação ideal da equipe na trigésima sexta rodada do campeonato, deu pena. Quando ele disse que o Frambueza foi o melhor em campo contra o Botafogo, deu pena. Quando declarou, numa entrevista coletiva, que seu sonho era um dia ter o nome gritado pela torcida... misericórdia. Coitado.

A gente sabe que um técnico é fraco quando uma meia-dúzia de três ou quatro jogadores notoriamente bons de bola vão mal. Foi assim com Leonardo Moura, Ibson, Juan e Marcelinho Paraíba, que tiveram raros momentos de brilho durante o campeonato. E foi assim com o único craque do elenco do Flamengo: Jônatas, que passou o ano inteiro fora até do banco de reservas.

Quando o problema é com apenas um jogador que anda em má fase, tudo bem, aí o problema é o jogador, não o técnico. Mas quando vários jogadores vão mal ao mesmo tempo, há algo errado no comando. O Harry Potter usa óculos, tem varinha de condão, cabelo lambidinho e até que é bem intencionado, mas não sabe falar grosso e escala mal o time. Vide as insistências com Jaílton como zagueiro (cometendo três pênaltis por jogo) e Marcelinho Paraíba (que só faltou chorar para ser escalado em sua posição de origem, no meio de campo).

Se o técnico do Flamengo em 2008 fosse o Felipão, o Muricy Ramalho ou o Mano Menezes, o Jônatas voltava a jogar bola rapidinho. Se bobear, já estaria de volta à seleção. Aliás, se o técnico do Flamengo fosse um desses caras no campeonato que acabou, seríamos campeões. Tínhamos time pra isso. E não há jogador atuando no Brasil que lance uma bola de longa distância, que tenha categoria e visão de jogo como Jônatas Domingos. Que ele é meio doidão, todo mundo sabe. Mas Romário e Maradona também são. Todo gênio é doidão.

O meu avô, que já foi dirigente do Flamengo, conta que um dia chegou no vestiário e encontrou o Jônatas cabisbaixo, quase chorando. Ele já era titular do time, já estava arrebentando e o bolso dele já estava cheio de dinheiro, mas mesmo assim, tinha os olhos cheios d’água ali no vestiário. Meu avô chegou pra ele e perguntou: “Ô Jônatas, que é que há? Tá triste por quê?”. O camisa 5, soluçando, respondeu algo parecido com: “Eu quero voltar pro Ceará, não aguento mais, quero voltar pra minha família...”. Pergunto: É gênio ou não é?

Poucos anos depois, Jônatas carregou o time na conquista da Copa do Brasil de 2006, com ajuda fundamental do Renato Abreu. Não esqueço a comemoração do gol do Renato contra o Ipatinga, naquela Copa do Brasil. O jogo da volta estava empatado no Maracanã quando o Jônatas saiu driblando no meio de campo e lançou uma bola limpinha pro Renato, que chutou de primeira e marcou o gol da vitória. No close da câmera de TV, deu para ler os lábios do Renato durante a comemoração. Ele procurava à sua volta e perguntava: “Cadê o Jônatas? Cadê o Jônatas?”. Queria agradecer o presente. "Cadê o Jônatas", foi o que eu fiquei perguntando ao Caio Potter o ano inteiro.

E agora é isso. O ano acabou e engolimos a pior classificação possível em um Campeonato Brasileiro, que é a quinta colocação. Só não é pior que o rebaixamento. E ainda temos que aturar aquela grande corporação, aquele business, que é o São Paulo Futebol Clube, tomar o nosso posto de maior campeão do Brasil com aquele joguinho safado deles. Você, que não é flamenguista, dirá: “Isso é papo de recalcado”. E é mesmo, mas é também papo de quem não acha legal ver uma empresa ser campeã de futebol.

Quanto ao rebaixamento do Vasco, senti pena (oh, sentimento profano!). Cheguei a torcer pelo time das mulheres bigodudas porque não queria ver tiração de onda por parte do Eurico Miranda – aquele hipopótamo de suspensórios, o personagem mais escroto da história do nosso futebol. Torci pelo rebaixamento do Fluminense. Este sim, merecia. Afinal, todos sabem que o time da burguesia carioca voltou à primeira divisão numa virada de mesa estapafúrdia.

Nós, flamenguistas, tivemos um ano triste. Triste porque o futebol é feito de expectativas e todas as nossas foram frustradas a partir daquela que foi a maior tragédia rubro-negra da história: a derrota por três a zero para o América do México, na Libertadores. Depois vieram outros desastres, como a derrota para o Atlético Mineiro e o empate com o Goiás que, na verdade, foi mais uma derrota por três a zero.

Se tivemos algum momento de alegria em 2008, este nos foi fornecido por um dos nossos maiores ídolos: Renato Gaúcho. Ele, que fez aquele gol insólito contra o Atlético Mineiro, em 1987, e que, agora, comandou o fracasso do Fluminense na final da Libertadores contra a LDU. Valeu, Renato!!! E, no ano que vem, tudo pode melhorar. O Harry Potter já saiu de fininho, temendo ser alvejado pela pedra filosofal das arquibancadas, e o Jônatas vem aí. O Kaiser do Semi-Árido voltará a brilhar. Ele só precisa de um técnico que lhe dê um pouco de carinho e dois quilos de rapadura pra matar as saudades do Ceará.

Zé McGill

Aqui uma pequena amostra do que o Jônatas sabe fazer. Veja sem som, porque a música é uma merda.
http://www.youtube.com/watch?v=jMhwQhAx-QU

Em compensação, aqui está um clipe amador da melhor música do mundo: Gentleman, de Fela Kuti. Pra ouvir no último volume.
http://www.youtube.com/watch?v=-ykpwr8K3M4