quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

UMBABARAUMA OU POR QUE EU SOU FLAMENGUISTA DOENTE?

Dizem que o Flamengo tem a maior torcida do Brasil porque as primeiras transmissões de jogos de futebol pela Rádio Nacional privilegiavam as partidas que envolvessem o time da Gávea, numa espécie de propaganda em massa. Dizem que o primeiro time do Rubro-Negro treinava na praia e que por isso teria conquistado o coração do povo. Dizem que a combinação das cores vermelha e preta é coisa do Demo. E dizem também que mulher que perde a virgindade antes do casamento vira mula-sem-cabeça e que de boas intenções o inferno está cheio. Dizem.

Nasci no estado do Oregon, nos Estados Unidos, e sei que a parcela gringa da minha família – por parte de mãe – não tem a menor idéia do que seja o esporte bretão. Eles até já ouviram falar em Pelé, mulatas e araras, mas futebol pra eles é aquele jogo em que um bando de trogloditas encapacetados se atracam na disputa por uma bola oval que não consegue rolar no gramado artificial. Meu falecido tio Harry era fã dos San Francisco 49ers. Aposto que ele morreu achando que a maior glória do esporte era o touchdown. Pobre tio Harry.

Quando desembarquei no Brasil, aos três meses de idade, meu avô paterno já fazia parte da diretoria do Flamengo. Por isso, durante muitos anos desfrutei de regalias que causariam inveja a qualquer torcedor mirim ou master: Entrei em campo de mãos dadas com o Zico, conheci a concentração dos jogadores em São Conrado e participei de correntes no vestiário antes dos jogos. Muitas vezes fui ao estádio no ônibus da delegação e uma vez voltei pra casa no carrão do técnico Vanderlei Luxemburgo, com ele ao volante e meu avô no banco do carona. A taça de um torneio carioca no meu colo.

Minha mãe conta que um dia, aos quatro anos de idade, acordei e fui dizer a ela o seguinte: “Mãe, eu não consigo tirar o Raul da cabeça!”. O ano era 1981 e suponho agora que o Raul, goleiro do Flamengo naquela época, tenha invadido meu sono pouco depois de 13 de dezembro daquele ano, data da maior conquista do clube: o título mundial no Japão. A senhora minha mãe afirma ainda que eu repetiria aquela frase pelos próximos dois dias. E, naturalmente, ficou preocupada. Uma criança naquela idade deveria soltar frases do tipo “Mãe, eu quero ir ao Tivoli Park!!” ou “Mãe, eu quero geléia de mocotó!”. No entanto, o que passava pela minha cabeça era a imagem do Raul com sua camisa amarela de número 1.

A minha primeira vez no Maracanã foi para assistir a um Flamengo e São Paulo, no ano seguinte. Não me recordo dos detalhes da partida, mas hoje sei que os paulistas ganhavam por dois a zero e que o Flamengo virou com gols de Zico, Andrade e Zico, nesta ordem. Me lembro que, no momento da virada, meu pai me levantou sobre a cabeça ao mesmo tempo em que soltava o grito alucinado de gol! Pela primeira vez senti a arquibancada tremer com os pulos e os urros da multidão. Ao nosso lado, um negão gordo e beiçudo babava e saltitava sem parar, sorrindo com a língua de fora. Acho que a baderna me deixou mais assustado que qualquer outra coisa, afinal eu mal completara meu quinto aniversário e ainda devia chupar chupetas. Mas aquele foi o meu batizado.

Naquele dia, sem perceber o que estava acontecendo, ingressei na ala infantil dos doentes mentais do manicômio vermelho e preto. Eu havia contraído uma doença incurável de sintomas peculiares que se manifestariam principalmente nas tardes de domingo pelo resto da minha vida. Não se tratava de nenhuma doença rara e nunca atingi sua fase terminal, ou seja, nunca passei a noite na fila da bilheteria de um estádio dormindo ao relento à espera de um ingresso, o que chega a ser comum entre os milhares de indivíduos infectados por tal enfermidade neste país. No meu caso, a bipolaridade sempre foi o maior efeito colateral da doença. Sua capacidade de estragar o meu dia (no caso de uma derrota) ou de me fazer feliz (nas vitórias) é impressionante.

Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra. Violentaram a frase dele e hoje em dia se diz que toda maioria é burra. Pois eu sou muito, muito burro então. Faço parte de uma maioria de quarenta milhões de fanáticos e não consigo encontrar uma explicação lógica para isso. Não sei como cheguei a este nível de burrice, talvez eu simplesmente não tenha nada melhor para fazer com o meu tempo, mas sei que ainda outro dia me flagrei desesperado dentro de um ônibus, preso no trânsito. Era dia de jogo e faltavam menos de dez minutos para o apito inicial. Buzinas berravam ao redor, a chuva desabava do céu e um mosquito azucrinava meu ouvido. Mas eu só conseguia pensar em chegar depressa em casa para me sentar na frente da televisão e ver o jogo.

Parei por um minuto e comecei a pensar no motivo daquela minha aflição irracional. Não acredito que minha paixão doentia pelo Flamengo se dê pelos motivos do meu currículo familiar. Meu irmão, por exemplo, passou por quase todas as experiências catequizadoras descritas acima e hoje em dia não sabe nem quem é o técnico da equipe. De certa forma, o invejo por isso. Ele não sofre como eu quando somos eliminados da Taça São Paulo de Futebol Júnior. Ele não briga com a mulher dele quando um timeco obscuro do Uruguai nos mete três a zero goela abaixo. Ele não caminha macambúzio e cabisbaixo pelas vielas desertas quando nosso time é derrotado.

Por outro lado, não sei se o meu irmão saboreou como eu aquele rompante de euforia que me acometeu quando o Renato Gaúcho arrancou do meio-de-campo com a bola dominada, passou pelo zagueiro e driblou o goleiro João Leite antes de tocar para o fundo da rede no mais incrível jogo de futebol que já assisti: Flamengo 3 x 2 Atlético Mineiro, semi-final da Copa União de 1987. Era o gol apoteótico de uma vitória inesquecível e eu extravasava a tensão que havia se apoderado do meu pequeno esqueleto de dez anos de idade me debatendo contra o chão da sala num misto de raiva e alegria.

Assim que aquele jogo terminou, a sensação era parecida com a do relaxamento que ocorre logo em seguida a um orgasmo. Tranquilidade absoluta e um prazer formigante na espinha. Talvez esteja escondido nesta sensação pós-vitória o motivo da minha tara pelo Flamengo. Talvez tudo não passe de uma busca frenética pela próxima dose de formigamento espinal. Talvez. Mas ali dentro do ônibus, vinte anos depois, nada desta baboseira subjetiva importava. Eu queria era chegar em casa o quanto antes e ligar a TV.

Quando o ônibus se livrou do engarrafamento, vi que ainda poderia chegar a tempo. Passaram-se mais alguns minutos e finalmente puxei a cordinha da campainha e a porta traseira daquela banheira motorizada se abriu. De repente, o Umbabarauma se libertou de dentro de mim. Eu já podia até escutar os acordes iniciais e a batida afro-samba-hardcore da música do Jorge Ben. Saí correndo e tropeçando pela calçada, o coração quase saindo pela boca. Mas tudo acabaria bem. Eu chegaria a tempo de ver Obina – a encarnação do ponta-de-lança africano idealizado pelo compositor - ajudar o time a vencer aquela batalha épica: Flamengo vs. Cardoso Moreira.

Zé McGill

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

JUVENTUDE BRONZEADA


Sete horas da noite, sexta-feira quente de janeiro. Corre o horário de verão e o sol ainda ferve lá no alto, olhando pra baixo e vibrando com o derretimento alheio. Saí do trabalho, na Torre do Rio Sul - o World Trade Center carioca – e resolvi caminhar pelo calçadão da praia, do Leblon até o Arpoador. Tenho 30 anos. Bebo bem, fumo melhor ainda e minhas juntas às vezes pedem arrego. Não custa nada trocar o óleo uma vez por mês e curtir um pouco do verão carioca... Ahhh, o verão carioca.

Atravesso a ciclovia e dou logo de cara com a primeira madame de bunda murcha conduzindo seu poodle branco e perfumado. Sempre detestei poodles. É sem dúvida o cachorro mais escroto do mundo, com seu rabinho de pompom de animadora de torcida de futebol americano. E o Leblon está infestado deles. Da atendente da loja de sucos ao magnata proprietário da cobertura, são todos poodles.

Mas eis que surge a primeira morena gostosa trotando na minha frente com um short branco colado na bunda. Rêgo balançando, fones no ouvido. Fiquei tentando adivinhar o que ela estaria escutando. Provavelmente alguma coletânea do Oswaldo Montenegro e Oswaldo Montenegro é chato pra caralho, mas foda-se. Fui seguindo a bunda até Ipanema.

Lembrei da minha cena predileta de todos os tempos do cinema nacional, quando o José Wilker leva a Vera Fischer pra dar uma trepada no Alto da Boa Vista em “Bonitinha, Mas Ordinária”. De repente, no meio da foda, aparece um indigente gritando “Eu também quero, eu também sou filho de Deus!”. E o casal foge. A Vera tapando os peitos com o braço.

Olhei de novo pra bunda da morena e comecei a pensar: porra, eu também sou filho de Deus. Vou chegar e dizer isso pra ela... “Eu também quero! Eu também sou filho de Deus!”. No máximo corre o risco de ela achar que eu estou vendendo bíblias. Apertei o passo, já quase em Ipanema, colei nela e falei a frase do indigente, me aproveitando do fato de que ela não escutaria nada com o fone no ouvido.

“Oiii???”, ela respondeu tirando o fone. Na mesma hora, chega de patins o Menino do Rio - diretamente da letra do Caetano Veloso, com dragão tatuado no braço e tudo. Dá um selinho na morena e fica me olhando com cara de cu. Fui andando pelo calçadão, pensando no Oswaldo. O Montenegro. O cara come a Paloma Duarte. Tá melhor que o Menino do Rio.

Já eram oito da noite e o sol ainda estava se pondo. A luz dava um clima de fim de festa e o céu estava cheio de cores. Eu que sou daltônico vi o céu laranja e a areia meio verde. Numa boa, é um privilégio ser daltônico. Além de enxergar essa psicodelia de cores, o sujeito ainda pode ser liberado do exército e tirar dez na prova de geografia porque não tem condição de colorir o mapa. Comigo foi assim.

Mas o sol estava se pondo e eu ia me aproximando do Posto 9, o reduto sagrado da juventude bronzeada carioca, na praia de Ipanema. É lá que você precisa atravessar um labirinto do estilo Minotauro pela areia pra conseguir chegar até a água e dar um mergulho num dia de calor. É lá que a nossa juventude apresenta seu tórax apolíneo e desfila sua coxa bombada de acadêmia. É lá que o sol nasce para quase todos. É o oasis da maconha e da punheta. O maior barato. Dizem que a culpa de tudo isso é do Gabeira, que no final dos anos 70 desfilava pela área com uma micro-tanga para expressar toda a sua liberdade e masculinidade.

E então aconteceu. Aplausos. O Posto 9 inteiro aplaudindo o pôr-do-sol e eu ali presenciando aquilo com a calça jeans grudada nas pernas, ensopadas de suor. Todos batendo palmas em direção ao astro-rei no maior alto astral. Um espetáculo de reverência à natureza. Parecia que de repente o mundo havia sido tomado por pessoas sensíveis. O cara da barraca de bebidas abraçava o vendedor de queijo coalho como dois estranhos se abraçam no Maracanã na hora do gol do Flamengo. Apitos soavam por toda a orla estimulando a revoada de dúzias de pombos, e uma turista norueguesa enxugava os olhos marejados de emoção.

Precisava tanto? Me perguntei. Aquilo tinha um ar de ato final de tragédia grega protagonizada pelos atores errados. A fauna da Zona Sul do Rio, enquanto emporcalhava a areia e o mar com copos de plástico e sacos de biscoito Globo, brindava o crepúsculo numa celebração duvidosa. Nisso olho para o quiosque ao lado e noto que dois casais com taças de champagne nas mãos estavam me fitando, como se perguntassem entre eles: “Por que ele não está aplaudindo também? Cara estranho”. Ao mesmo tempo tive vontade de rir e vomitar. Ou seja, eu estava sendo intimado a participar daquela papagaiada tropical.

Não que eu não fosse capaz de perceber a beleza daquele fim de tarde. Eu gosto do sol, gosto da praia e o Rio de Janeiro provavelmente é mesmo a cidade mais bonita do mundo no auge do verão. Mas naquele momento preferia que a praia estivesse vazia e que a juventude deixasse o sol se pôr em paz. Comprei uma lata de cerveja morna e a ergui na direção dos dois casais como quem faz um sinal de brinde ou como quem diz: “Fodam-se”.

Finalmente percebi que o sol estava com pressa de ir embora e se afundava atrás da linha do mar numa velocidade assustadora, que nem um pobre coitado que corre para a privada em meio ao desespero de uma dor de barriga. Parecia envergonhado, sem entender todo aquele mimo. Acho que ainda o escutei resmungar enquanto sumia no horizonte: “Eles que aguardem os próximos capítulos do aquecimento global”.

Zé McGill

BEM-VINDO AO MUNDO DE FODA-SE

Este espaço é experimental. Uma cobaia da Revista Foda-se, onde em breve este que vos escreve e outros seres irão falar sobre música, futebol, cinema, cerveja, literatura, sexo e o que mais der vontade.

A Foda-se não é uma revista alternativa, descolada ou pop. Muito menos intelectualóide, politizada e responsável. Aqui reina o mais sincero foda-se. Não o foda-se agressivo, com ponto de exclamação, mas o foda-se seguido de reticências, dormente e indiferente.

Aqui não existe compromisso com nada. Portanto, se você pretende encontrar a sua tribo, seja ela qual for, permita-me sugerir que não perca o seu tempo. Procure algum fanzine underground ou a revista Veja. Caso contrário, ligue o seu botão do Foda-se e seja bem-vindo.

Zé McGill