domingo, 9 de agosto de 2009

M Ú Ú Ú Ú Ú


Outro dia saiu no jornal que a Secretária Municipal de Cultura, Jandira Feghali, teria dito que “o Rio de Janeiro voltou a ser a capital cultural do país”. É... Parece que o carioca tem mesmo essa mania feia de vender para o resto do mundo uma imagem sua que não reflete a realidade. Dizem que este aqui é o lugar onde as coisas acontecem primeiro, onde o povo é o mais caloroso na recepção à cultura, ponto de partida ou escala indispensável para o sujeito que pretenda consolidar sua carreira artística etc. Mas a realidade é bem diferente...

A realidade carioca é a cultura do hype, da pulseirinha VIP, dos modismos efêmeros e da falta de curiosidade. Especialmente na Zona Sul da cidade, onde a juventude bronzeada parece estar virando gado, apesar de sua condição financeira privilegiada e do acesso facilitado à informação.

Sábado à noite, se não ameaçar chover, é quase sempre o mesmo filme: os bois bronzeados seguem as vaquinhas bronzeadas e o gado inteiro vai comer capim naquela festa bombada, com músicas que bombam nas rádios, ou naquele show onde a pegação é garantida. A qualidade da música e do evento em si é o que menos importa. O negócio é fazer aquela social, ver e ser visto. O que interessa é dar beijo na boca, sacou, brother?

Nada contra o beijo na boca – pelo contrário –, mas, sair de casa é só isso?

É bom que fique claro: eu não me acho mais inteligente que você, oh, leitor macambúzio! Mas já percebi que existe no mundo globalizado e, especialmente, no Rio de Janeiro, um processo sinistro de emburrecimento geral que está tomando conta da situação.

Estou exagerando? Então, responda: você costuma sair de casa pra conferir o show de uma banda nova da qual você nunca tenha ouvido falar? Você tem interesse em uma festa onde os DJs não toquem músicas que bombam nas rádios? Você vence a preguiça e o preconceito contra aquilo que é de fato novo na música, na literatura, no cinema, nas artes plásticas, na cultura em geral? Se sua resposta foi positiva para as perguntas acima, saiba: és praticamente um super-herói carioca! E, infelizmente, uma exceção.

Mas se você se sentiu culpado, entenda que a culpa não é só sua. Você não tem nenhum grande veículo de comunicação que te mostre a diferença entre a melancia e a Mulher Melancia. Pelo contrário, em termos de cultura, tudo que chega com alguma facilidade ao seu conhecimento e da maioria dos brasileiros é reality show, música com jabá, filmes (na sua maioria, umas merdas) de Hollywood, mega eventos de qualidade duvidosa e informação preguiçosa ou tendenciosa.

Tomemos como exemplo o filme Se eu fosse você 2. Eu nem assisti, e não interessa agora se ele é bom ou ruim. Só que o filme tem atores Globais, um investimento forte de marketing etc. E aí as salas lotam na primeira semana. Em seguida, começam a divulgar o sucesso comercial da película e... boom! Sucesso total. Milhões de bois e vaquinhas comendo pipoca no escurinho do cinema. Enquanto isso, o filme sobre o Arnaldo Baptista (Lóki?), um dos caras mais importantes da cultura nacional, ganha três salinhas pequenas para exibição. Sai de cartaz em poucas semanas e quase ninguém assiste. Legal, né? MÚÚÚÚÚ...

E quem se lembra do show do Blur, no Metropolitan, em 1999? Eu estava lá e vi a decepção nos olhos do Damon Albarn (vocalista), quando pisou no palco e percebeu a falta de público no recinto. O cara colocou a mão direita sobre os olhos, como se estivesse procurando o público, e mandou no microfone: “Onde estão seus amigos?” Assim mesmo, o show foi fuderoso, histórico. Uma das maiores bandas de rock do mundo e o carioca cagou pra eles... Nunca mais voltaram. E o Radiohead? Lembra da capa da revista Rio Show na semana do show deles no Rio? Era a foto de um hambúrguer... De novo: um hambúrguer! Resultado: o show mais vazio da turnê latina da banda. MÚÚÚÚÚ...

E ainda insistem nessa baboseira de “capital cultural do país”! É muita arrogância para uma cidade onde existe meia dúzia de três ou quatro casas de shows decentes para apresentação de novas bandas, onde o teatro só enche quando a peça tem ator de novela e onde boa parte das crianças está fora das escolas. Esse complexo de superioridade que inundou São Sebastião é peça fundamental na máquina do emburrecimento.

E outra peça importante desta engrenagem é a falta de curiosidade. Sem a boa e necessária curiosidade, acontece como no show da Cat Power, domingo retrasado: lamentável fiasco de público. (Detalhe: o show lotou em São Paulo). Sem ela, as boas bandas gringas cancelam os shows no Rio e vão tocar em Curitiba. Sem ela, as novas bandas cariocas nunca vão tirar o pescoço da lama. Sem ela, as pessoas que encontramos nas festas de música alternativa (rock, eletrônica, africana, dos Bálcãs ou qualquer outro som) serão sempre aquela mesma meia dúzia de sete ou oito conhecidos. Sem curiosidade, o emburrecimento toma conta! Se liga, malandragem...

O Rio de Janeiro continua lindo e cheio de gente esperta, no bom sentido do termo. Mas, sem a tal da curiosidade, em breve estaremos todos mugindo uns para os outros nos currais VIPs da noite carioca. MÚÚÚÚÚ...

Zé McGill

* Originalmente publicado no Tico Tico, o site do programa roNca roNca, do Mauricio Valladares:

** E, antes do Tico Tico (em versão reduzida), no blog do Rio Fanzine (O Globo):

*** Frank Sinatra não tem nada com isso... Fly me to the moon!

segunda-feira, 20 de julho de 2009

NINGUÉM FAZIA IDEIA


Você já parou pra pensar sobre a renovação que certas palavras sofreram por causa do novo acordo ortográfico da língua portuguesa? Nos textos que você lê nos jornais, na internet, nas publicações mais recentes, você percebe que existe uma palavrinha que antes quase não era notada, mas que agora, depois do tal acordo, botou o pescoço pra fora da janela?

A tal palavra é IDEIA. Segundo meu dicionário de bolso, surrado e manchado de suco de goiaba, significa: “Representação mental, imaginação; elaboração intelectual; concepção; plano, projeto”. Não sei se aconteceu somente comigo, mas após o tal acordo, parece que IDEIA começou a pipocar loucamente em 90% dos textos que leio. Eu não fazia IDEIA da assiduidade do nobre vocábulo. Acho que ninguém fazia IDEIA.

E de quem terá sido a magnânima IDEIA de colher o maduro acento agudo lá do alto dos cachos da IDÉIA? Fico imaginando um acadêmico lusitano, cabeçudo e atormentado, desprovido de boas IDEIAS, que se depara com a palavra IDÉIA num canto escuro de seu escritório. Ele decide escalar o E para afanar-lhe o acento na mão grande. Trepa sobre o segundo braço da letra, olha à sua volta para certificar-se de que não há ninguém olhando e disfarça um pigarro antes de passar a mão no agudo e enfiá-lo no bolso do paletó. Em seguida, pega o telefone e começa a ligar para os colegas de academia, conta-lhes sobre o sequestro e propõe um... acordo.

Ainda bem que o tal acordo ortográfico exclui os nomes próprios. Eu conheço uma moça bonita, de nome igualmente bonito, que tem o assassinado trema posto sobre a letra i, no meio do nome. Essa moça bonita não quer se livrar do trema e pode ignorar o tal acordo se assim desejar. Mas e a palavra linguiça, por exemplo, como é que fica?

Violentou-se a lingüiça, justamente ela, que sempre sofreu as mais perversas violações: além de ser tostada nos churrascos da vida, tornou-se sinônimo de órgão genital e de embromação, antes mesmo que a coroa do U levantasse voo. Por sinal, esta última palavra (ex-vôo) é mais uma que foi descortinada. Eu diria que voo vem logo na cola de IDEIA na fila indiana das palavras defloradas que andam salientes. Não sei se foi o acidente da Air France ou a queda do acento circunflexo, que deixou careca seu primeiro O, mas passei a ler voo com frequência muito maior nos últimos meses. Assim como passei a enxergar IDEIA em tudo que é folha de papel. E nisso reside aquele que talvez seja o único atributo positivo do novo acordo ortográfico.

Dizem que Deus está nas coincidências. E talvez não seja por acaso que IDEIA esteja pululando sob nossas pupilas ultimamente. Em nossas vidinhas modernosas, onde somos quase todos consumidos pela urgência de ganhar dinheiro, consolidar carreiras profissionais e conquistar patrimônios materiais, sobra cada vez menos tempo para parir boas IDEIAS. Parece que vivemos um processo dormente de emburrecimento no mundo globalizado, onde a boa IDEIA está minguando e nem a Caninha 51 salva.

Enfim, não sei se este texto em homenagem à IDÉIA foi uma IDEIA genial ou um sinal de que preciso beber menos, mas vou trocar uma IDEIA com aquela moça bonita (aquela, que manteve o trema no nome) pra ver se ela consegue dar um jeito de tirar esta IDEIA fixa da minha cabeça. Mas, que IDEIA...

Zé McGill

* All the world is green - Tom Waits



domingo, 28 de junho de 2009

LATIN GOES SKA


O negócio é o seguinte: nesta resenha, vou usar a palavra CLASSE repetidamente. Porque um show dos Skatalites é isso: classe. E não há sinônimo que substitua “classe” à altura.

Esperar que os Skatalites – banda fundada em 1962 – se apresentassem com o vigor que se percebe em álbuns como Stretching Out (um clássico do ska, de 1986) seria covardia. Afinal, metade da banda já ultrapassou a casa dos 60 anos de idade. Por outro lado, a falta de fôlego (flagrante em alguns momentos) foi compensada com doses generosas de classe, muita classe, no histórico show que passou pelo Rio de Janeiro, na última sexta-feira (05/06/09), no Circo Voador.

Mas não confunda falta de fôlego com falta de energia. Até porque os coroas do grupo (Lloyd Knibbs – bateria, Lester Sterling – sax alto, Cedric Brooks – sax tenor, e a cantora Doreen Schaffer) andam muito bem acompanhados por uma moçada que esbanja jovialidade no palco. E por falar em boa companhia, os jamaicanos acertaram também na escolha do Canastra, banda carioca que fez mais do que um simples show de abertura.

O bailão caribenho dos Skatalites foi inaugurado com “Freedom Sounds” e “Occupation”, dois clássicos do repertório deles, que serviram como aviso de que o negócio seria sério. Logo de cara, percebe-se que o coração da banda é mesmo o paredão indigesto de metais (dois saxofones + trompete + trombone). Sterling e Brooks, sempre no centro do palco, entram juntos num estado de torpor que dá gosto de ver. Os velhinhos ficam imóveis, tocando de olhos fechados, enquanto o resto da banda e o público ululam radiantes ao redor. Coisa fina. Classe.

E se os metais são o coração dos Skatalites, bateria e guitarra são o pulmão. Knibbs (o Charlie Watts do ska!) não ataca mais com a vitalidade do passado, as viradas de bateria são mesmo raras, mas é ele quem dá as cartas do ritmo. Ele e o guitarrista Devon James, que tem um ar quase blasé, quase preguiçoso, mas uma mão direita nervosinha que só ela. Mão direita que ficou em evidência em “Simmer Down”, por exemplo.

Outros clássicos skatalaitianos como “Guns of Navarrone” e “Eastern Standard Time” não poderiam faltar. E não faltaram, mas foi em “Latin Goes Ska” que o Circo Voador quase levantou voo de verdade. Uma galera que dançava em frente ao palco na maior animação não se conteve: começaram a subir no palco, um de cada vez, em total harmonia, pra dançar com a banda. E Lester Sterling, um dos membros originais do grupo (ao lado de Knibbs e Schaffer), aprovou a bagunça, com muita classe.

Agora, classe mesmo é com a tal da Doreen Schaffer. Ela participou de menos da metade do show, mas quando cantou, foi com elegância extraordinária. O que mais rola pelo mundo é banda de reggae fazendo aquele sonzinho palha (tomemos “palha” por antônimo de classe, ok?), sem vergonha mesmo. E quando a gente testemunha uma cantora como Doreen e uma banda como os Skatalites tocando reggae como fizeram no meio do show, soa um alarme lá na parte de trás da cabeça.

Enquanto assistia ao show, fiquei tentando achar defeitos ou imperfeições para que esta resenha não soasse como rasgação de seda de fã. Mas não achei nada. O único senão do show ficou por conta das falhas no P.A., que tentaram mas não conseguiram tirar o brilho dos solos de trombone de Vin Gordon, que por vezes remetiam ao canto de uma baleia assassina no fundo do oceano.

E também tem o seguinte: esse papo de imparcialidade jornalística vira conversa pra boi dormir quando se escreve sobre o show de uma banda como os Skatalites, criadores de um ritmo que deu origem ao reggae de Bob Marley, e que nunca haviam se apresentado no Rio de Janeiro. Às vezes, é preciso gritar para que as pessoas entendam: FOI HISTÓRICO!

Zé McGill


** Saiu também no blog oficial do Circo Voador. Valeu, Lencinho!

*** Foto de Tiago Chediak.

****Latin Goes Ska @ Circo Voador!!!


segunda-feira, 22 de junho de 2009

CHOLITA COCHABAMBA


Segue abaixo conto curto escrito a partir da foto acima.

CHOLITA COCHABAMBA

Peguei o Trem da Morte em Corumbá, numa manhã de quarta-feira. Meu destino era a cidade boliviana de Cochabamba, onde Ramon me aguardava com o material. Para chegar até lá, eu deveria descer do trem em Santa Cruz de La Sierra e de lá tomar um ônibus para o destino final. Tive que aturar vinte horas dentro daquele vagão bodoso, entre as cholas que vendiam limonada em saquinho e as galinhas histéricas. Sentada ao meu lado, uma personagem estranha achava graça do meu desconforto. Era uma anã boliviana, que se apresentou como “Cholita Cochabamba, atriz y vendedora de limonada nas horas vagas”.

- Ah... Cochabamba, si? Yo estoy indo para allí, disse, caprichando no meu portunhol.
- Que bueeeno! Puedes quedarse en mi casa, si quieres, respondeu a anã.

A simpatia gratuita de Cholita me pegou desprevenido. E apesar de ter dispensado polidamente o convite, percebi que a pequena boliviana não pararia de falar. Desandou a contar a história de sua vida. Falou sobre a infância alegre em Cochabamba, relatou episódios que evocavam o preconceito contra sua estatura e, em determinado momento, chegou a dizer que a única parte de seu corpo que não lhe agradava eram os seios, muito pequenos para o gosto dela. Se não me engano, foi justamente na hora em que ela falava sobre os seios que notei que o Trem da Morte estava parando.

Olhei pela janela do vagão e reparei um movimento suspeito do lado de fora. Cholita, que não era passageira de primeira viagem, avisou que tratava-se de uma quadrilha peruana, a mesma que assaltara o trem semanas antes. Na mesma hora, peguei minha maleta e apertei-a contra o peito. Percebendo minha aflição, Cholita sugeriu sentar-se sobre a mala, criando assim o disfarce. E eu agradeci. Sabe-se lá o que aconteceria caso os peruanos descobrissem o conteúdo da maleta...

Mas deu tudo certo. Cheguei à Cochabamba no dia seguinte, acompanhado da anã boliviana. Nos despedimos calorosamente num ponto de ônibus tumultuado e fotografei a pequena com seu container vermelho de limonada. Ela me pediu que lhe mandasse a foto pelo correio assim que chegasse ao Brasil. E foi o que fiz. Inclusive, usei o Photoshop para presentear Cholita com um avultado par de seios. Acho que vou visitá-la no verão.

Zé McGill

* Steve Miller Band, The Joker. Coisa fina!

quarta-feira, 10 de junho de 2009

AFROBEAT NO GO DIE!


Na última sexta-feira (dia 05 de junho), saiu no Rio Fanzine (Rio Show - O Globo) um texto meu sobre o afrobeat. Muito legal! Mas cortaram um bocado do texto, já que a prioridade era da lenda jamaicana Skatalites, com toda razão. Afinal, quem é Zé McGill comparado aos reis do ska?!

Enfim... segue abaixo o meu texto na íntegra, pra quem quiser dar um confere. Para ler a versão publicada n' O Globo, basta clicar na imagem acima.
E a festa MAKULA do dia 06 foi histórica! Confira algumas das fotos do bailão africano no www.myspace.com/festamakula

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Escutei Fela Kuti pela primeira vez em 1997, eu acho. Lembro que era final de tarde de verão, em Los Angeles, e um amigo brasileiro que morava comigo me apresentou aquele CD cuja capa trazia estampada a figura de um babuíno meio sinistro. Era o disco Gentleman (1973) e a primeira música que rolou tinha o mesmo nome. Naquela época, eu escutava muito Pixies e Jane’s Addiction e não tinha muita paciência com o que não fosse rock. Quando meu amigo disse que o tal Fela Kuti era da Nigéria, quase pedi a ele que deixasse pra botar o disco numa outra hora. Mas aí a música começou. E entrou uma batida de percussão que lembrava samba, umas notas graves no teclado e um saxofone demente. Legal, mas nada que não me fizesse querer colocar de volta o disco dos Pixies. Só que, lá pelo segundo minuto da música, quando entraram juntos o baixo e a bateria, ingressei numa espécie de transe. Senti a parede do apartamento tremer e o cheeseburger que eu havia almoçado revirar dentro do meu estômago. Saca aquelas músicas que te ganham logo na primeira audição? Pois é...

Alguns anos mais tarde, já no Brasil, comecei a pesquisar sobre o afrobeat, gênero criado pelo Fela, que une o groove do soulfunky do James Brown à liberdade criativa do jazz, assim como a elementos propriamente africanos e também ao vigor do rock, ele mesmo. Fui caçar aquele som que eu havia escutado em “Gentleman”. Descobri outros nigerianos como Orlando Julius, Tony Allen, Joni Haastrup e The Funkees. Todos contemporâneos da melhor fase do Fela, nos anos 70. E me dei conta de que havia esbarrado com o afrobeat justamente no ano da morte de seu criador. Fela Kuti morreu naquele ano de 1997, quando eu só escutava rock e comia cheeseburger em Los Angeles. Por algum tempo, lamentei ter chegado tarde demais à África.

Acontece que o tempo passou e surgiu na internet o MySpace. Ali, tomei conhecimento da sobrevivência do afrobeat pelo mundo. Ouvi o som de big bands surgidas já no novo século como Nomo (de Michigan), Afrodizz (Montreal), Fanga (Montpellier) e JariBu (Tóquio!). E fiquei sabendo que existem duas cenas em ebulição no orbe terrestre: Nova Iorque, com bandas como Antibalas, Akoya e Kokolo, e Londres, com Dele Sosimi e Inemo, entre outras. Algumas paqueram o jazz, outras flertam até com o hip hop e muitas são compostas por integrantes não-negros. Mas aquilo que o mestre Fela ensinou, inclusive o discurso politizado, está quase sempre ali, na base de tudo. Ou seja, o afrobeat não apenas sobrevive, mas está se espalhando pelo mundo com grau de alcance parecido com o de uma pandemia incontrolável.

Isso sem falar em Lagos, capital da Nigéria, onde os rebentos do Fela – Femi e Seun Kuti – mantém aceso o fogo do afrobeat em sua terra natal. No Brasil, já tivemos grupos como Afrika Gumbe e Obina Shok, cheios de elementos afro no som. E estão pipocando novas bandas nacionais (vide o MySpace) que colocam o afrobeat entre suas principais influências. Portanto, não se espante caso uma tsunami de afrobeat invada o Rio de Janeiro em breve. E não precisa esquecer o samba, a caipirinha, o rock e nem o cheeseburger. Mas chute a preguiça e o preconceito pra escanteio: ouça o som e tente não dançar. Afinal, carregamos no nosso background cultural mil e uma referências africanas. Ou não?

Zé McGill

* Pra não perder o hábito, segue videozinho cascudo da música "Yegelle Tezeta", de Mulatu Astatke (Etiópia), sobre animação da Disney...




sábado, 30 de maio de 2009

REVISTA FODA-SE ENTREVISTA MAUVAL













A próxima edição da festa MAKULA (dia 06 de junho, sábado, no Cine Glória) terá participação histórica de Mauricio Valladares, a lenda! Para saber mais sobre a festa, clique nos flyers acima. Para entrar na lista amiga (R$10,00), mande e-mail com nomes completos para festamakula@gmail.com

Pra quem não sabe, Mauval, além de DJ e fotógrafo, é apresentador do roNca roNca (Oi FM - 102.9, toda terça-feira, às 22h), o programa de rádio mais legal do Brasil, uma verdadeira aula semanal de música, informação e bom humor. A Revista Foda-se trocou uma ideia com o mestre. Lá vai:


RF: A música africana tem expoentes diversos como a guitarrada do Franco, o groove do afrobeat do Fela Kuti, o jazz da Etiópia, o Kuduro de Angola e os temperos caribenhos da Orchestra Baobab, entre muitos outros. Você tem favoritos entre eles?

MV: A preferência aparece no momento... pela diversidade de estilos, cada um tem sua hora própria.

RF: Dá pra dizer que você e o Júlio Barroso (da Gang 90) foram os pioneiros do som afro na noite do Rio, certo? E já que toquei no assunto, qual é a dimensão da contribuição do Júlio, também como pesquisador musical, para a difusão desse tipo de som na cidade?

MV: Muita gente sempre ajudou para a circulação da informação africana. Acho que não podemos separar um estilo do outro... quando a música africana circular, os sons escandinavos e da Ilha de Marajó também chegarão aos ouvidos curiosos. Tudo está interligado!

RF: O Rio de Janeiro ainda pode ser considerada a capital cultural do Brasil? O que há de errado com o público carioca, que só sai de casa pra conferir o que é hype, os eventos da moda, e parece ter preguiça e falta de interesse em conhecer o que é de fato novo ou diferente na cultura em geral?

MV: De errado atualmente? Ha ha ha... quase tudo! Vamos pegar a tal da "cidade da música" de exemplo... Mas o principal nesse assunto de afastamento do público é a falta de informação. Não temos mais nenhum veículo de comunicação nos dizendo a diferença da melancia para a mulher melancia, manja?

RF: Como era a festa Funk n’ Reggae que você fazia no Rio na década de 80? Rolava muito som africano? O público respondia no pé?

MV: Ha ha ha... sim, as pessoas iam pra festa dispostas a se divertir com músicas fora do padrão.

RF: O que é um bom programa de rádio, na sua opinião?

MV: Um programa que informe e surpreenda!

RF: Porque é que o roNca roNca está no ar há tanto tempo, com um público tão fiel, e continua sempre atraindo novos ouvintes?

MV: Acho que por alimentar um público resistente.

RF: Existe algo ou alguém que você gostaria de ter fotografado mas ainda não fotografou?

MV: Os dejótas da Makula!!!

RF: Quem é que merece um foda-se bem bonito?

MV: Os responsáveis pelo emburrecimento dos brasileiros!


* Sente a pressão deste vídeo da Kokolo Afrobeat Orchestra, de Nova Iorque, num show na Inglaterra. Se liga na desorientação do público... com a presença do MV, a pista da MAKULA corre o risco de ficar parecida no sábado...


sábado, 16 de maio de 2009

MICK JAGGER DA BAHIA


Domingo, dia da mães, e a senhora minha mãe diz que queria ir ao show do Caetano Veloso. Eu acordei de ressaca, todo errado, não conhecia o disco novo e não me animei muito. Mas, como era dia das mães, topei na hora. Lembrei também que nunca havia assistido a um show do CV e que acho fodaços os discos do início da carreira dele. Cheguei sonolento ao Canecão.

E demorei a reconhecer a música de abertura: “A voz do morto”, registrada no disco de raridades Cinema Olympia, onde ela aparece tocada pelos Mutantes. Eu estava largado na cadeira e fui logo me ajeitando. Em seguida veio “Sem cais”, que também é a segunda faixa de Zii & Zie, o novo álbum. A linha de baixo, numa onda quase dub, me deixou chapado, ao mesmo tempo que me despertou. Guitarrinha criando clima cool, bateria cheia de classe, e a banda Cê, que acompanha Caetano desde o disco anterior, garantia a felicidade da mamãe. Eu já estava bem acordado.

Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo) e Marcelo Callado (bateria), além de figurarem entre os músicos mais talentosos e criativos do Brasil do novo século, também são fãs dos discos do início da carreira do Caetano. E só isso já sugeria que o repertório traria surpresas agradáveis. Mas eu não esperava “Maria Bethânia” (do primeiro disco dos anos de exílio, Caetano Veloso, de 1970), “Irene” e “Não identificado” (do incrível disco de capa branca, Caetano Veloso, de 1969). Esta última, com bateria demolidora de Callado. Aí, mamãe já merecia um beijo.

Caetano pode ser chato, você pode até implicar com ele. Mas é gênio. E talvez seja hoje o melhor cantor brasileiro em atividade. E bota atividade nisso. Além de virar os olhinhos para declarar sorrindo que “Eu sou neguinha”, o cara corre pelo palco feito um Mick Jagger da Bahia (em doses menores de energia), e cativa feito um David Bowie do Pelourinho. Ademais, conserva o (bom) hábito de saber surpreender musicalmente. Se bem que, ao final de “Não identificado”, uma madame da mesa ao lado, certamente surpreendida pela ausência dos maiores sucessos do baiano no roteiro do show, se empolgou e pediu “Leãozinho”. Perdidinha, coitada.

“Base de Guantánamo”, também do disco novo, é prova de que a torneira criativa musical de Caê não fechou. É quase um mantra, quase The Police, quase Cuba. Os backing vocals da banda são coisa fina e a letra fala mal dos norte-americanos. Eu sou norte-americano (nasci lá nos EUA), minha mãe também, e os dois gostamos da música. Tem gente que reclama que Caê faz questão de emitir opinião de forma explícita o tempo todo, até nas letras. Por mim, deixa ele falar e cantar o que quiser... Ele acerta muito mais do que erra.

Acertou na escolha de “Incompatibilidade de gênios”, de João Bosco, mais uma de Zii & Zie, que provocou corinho da plateia durante o bis. Acertou no cenário (de Hélio Eichbauer), em que uma asa-delta colocada praticamente sobre a cabeça do baterista parece que vai levantar vôo. E acertou em cheio no recrutamento da banda Cê.

Tudo bem, a letra de “Lapa” é meio esquisita. Precisava mesmo comparar o bairro carioca a um “rapaz gostoso”? Mas valeu muito ter ido. Mamãe ficou feliz. Eu também fiquei. E a ressaca sumiu. Às vezes, os melhores shows, os melhores filmes, os melhores encontros são aqueles em torno dos quais não se cria expectativa em excesso.

Ok, Mick Jagger da Bahia foi forçação, eu sei.

Zé McGill

* Só faltou no novo show de CV alguma música do disco Transa (1972). Se liga nesse vídeo da música "Nine out of ten" (do Transa), com a Banda Cê, no Tim Festival de 2006:

quinta-feira, 30 de abril de 2009

FALE A COISA CERTA


Se eu tivesse um ponto de escuta instalado no ouvido vinte e quatro horas por dia, o mundo seria meu. Com ajuda do ponto, eu falaria a coisa certa, sempre. E, falando sempre a coisa certa, o sujeito consegue o que quiser na vida. Conquista a mulher que desejar, consegue o emprego que almejar e, se quiser, vira até presidente da República. Basta dizer a coisa certa. Isto é: dizer o que os outros querem escutar.

Do outro lado do meu ponto de escuta, num quartinho enfumaçado e mal iluminado, uma equipe de apoio estaria sempre a postos: psicólogo, psiquiatra, historiador, filósofo, tradutor de vários idiomas, piadista, canalha, boçal... A fauna toda. Cada um seria acionado para soprar o discurso certo na minha orelha no momento adequado. Se eu me sentasse à mesa de um bar com um idiota, o boçal assumiria o comando do outro lado do ponto para nivelar a conversa. Se travasse discussão com uma intelectual pedante, teria o suporte do filósofo para explicar que a vida não é somente aquilo; do historiador, para provar que os antepassados dela também erravam; e do canalha, pra fingir que estou muito interessado no papo dela. E assim por diante.

A filosofia do “Fale a coisa certa” assombra os meus pensamentos há algum tempo. Mas foi na semana retrasada, ao assistir pela primeira vez o clássico Muito além do jardim (1979), com Peter Sellers, que a ficha finalmente caiu de vez. O filme conta a história de um jardineiro chamado Chance (Sellers) que, após a morte de seu patrão, é obrigado a deixar a casa onde trabalhou a vida inteira. O sujeito, um semi-retardado que nunca havia colocado os pés fora de casa e só conhecia a vida através da televisão, dá de cara com um mundo desconhecido e hostil: as ruas de Washington DC.

Logo na primeira noite, Chance é atropelado por uma madame (Shirley MacLaine) que, por medo de ser processada, decide levar o infeliz para sua mansão a fim de cuidar do ferimento causado no acidente. A simplicidade do protagonista – que acaba sempre falando a coisa certa, mesmo que por acaso – começa a abrir portas. Tudo o que ele fala é relacionado à jardinagem, mas as pessoas em sua órbita atribuem suas supostas metáforas a uma sabedoria profunda. Em pouco tempo, a madame está apaixonada por ele e seu marido, o milionário dono da mansão, o adota como confidente.

Num determinado momento do filme, o presidente dos EUA faz uma visita ao milionário, que era uma espécie de consultor seu. Na ocasião, Chance é apresentado ao presidente, que lhe pergunta algo como: “O que você faria para resolver o problema da nossa economia?”. Atrapalhado, o jardineiro responde o seguinte: “Enquanto as raízes estiverem sólidas, tudo estará bem no jardim”. O presidente, que nem era o Bush, fica impressionado com aquela “sacação” e divulga o “conselho” de Chance para toda a imprensa. No final, chegam mesmo a cogitar a candidatura do jardineiro à presidência dos Estados Unidos! Só porque ele falou as coisas certas nas horas certas.

Falar a coisa certa é, no entanto, relativo. Relativo porque o impacto causado pela fala depende do estado de espírito, do grau de instrução e das necessidades a serem preenchidas no âmago do interlocutor. Mas tenha certeza: sempre existirá a coisa certa a ser dita. Sempre. Mesmo que a coisa certa seja uma mentira ou uma contradição às suas ideias. E mesmo que você não queira dizer a coisa certa.

Aliás, se eu soubesse escrever a coisa certa o tempo todo, a Revista Foda-se causaria um frenesi universal, uma pandemia literária descontrolada. Mas como não tenho essa competência e nem um ponto de escuta no ouvido, me contento em escrever e falar a coisa relativamente certa de vez em quando. E viva o Brasil...

Zé McGill

ps - O texto acima é baseado na música Fale a coisa certa, de Zé McGill. Clique aqui para escutar a música no MySpace. A gravação é no esquema caseiro total, voz e violão, mas dá pra ter uma noção...


* Sly & The Family Stone tocando a coisa certa...

sexta-feira, 17 de abril de 2009

SERGIPANO - CAPÍTULO 2


SERGIPANO – CAPÍTULO II
(Domingo, 19 de abril de 2026)

O time do Flamengo, que jogava no clássico esquema 4-4-2, pisou no gramado do Maracanã com: Murillo; Ambrósio, Jorjão, Joaquim e Tuca; Pardal, Tomás, Paulinho Lambreta e Almeida; Tião e Zé Pedro. Sergipano, mesmo desfigurado, ficou no banco de reservas. Sobre o supercílio direito e a canela esquerda, pedaços generosos de esparadrapo branco. Heleno Vianna, o treinador, não sabia se poderia de fato contar com o atacante, mas preferiu tê-lo à disposição, apesar de deixar claro seu repúdio ao comportamento irascível do jogador. As câmeras de TV focalizavam Sergipano a cada dez minutos: expressão séria, os olhos verdes fixados na bola, que vadiava pelo campo. Registraram o momento em que ele socou o teto do banco de reservas, logo aos sete minutos de jogo, quando o centroavante do Botafogo, Pereira, abriu o placar numa jogada de bola parada.

Sentado ali, no banco de reservas, Sergipano sentia uma dor aguda na canela ferida e sofria desde a véspera com uma enxaqueca grave, causada pela segunda pancada, aquela que o norueguês lhe aplicara na nuca. Na metade do primeiro tempo, fechou os olhos com força, numa reação às dores, e aspirou o ar pelo nariz. Começava a chover no Maracanã e o cheiro de grama misturado ao cheiro de água da chuva provocou no Sergipano uma sensação que unia prazer e ansiedade. No minuto seguinte, levantou-se do banco. Passou o resto do primeiro tempo de pé ao lado de Reginaldo, o lateral reserva, e amigo predileto do Sergipano entre os jogadores do elenco rubro-negro; era um mulato franzino e extrovertido formado nas categorias de base do clube, assim como a grande maioria da equipe. Entre os jogadores, Reginaldo era carinhosamente chamado de “Pereba”.

Quando o juiz decretou o final do primeiro tempo, o placar ainda apontava 1 x 0 para o Botafogo. Sergipano caminhou até a escada do vestiário e começou a descer os degraus com certa dificuldade. Pereba ofereceu a mão ao amigo, que recusou ajuda. A torcida rubro-negra, que andava silenciosa naquela tarde de domingo, percebeu o sacrifício que fazia o seu camisa 11 e, num crescendo de arrepiar, começou a entoar o tradicional coro em reverência ao ídolo: “Vaaamos, Sergipaaano / Nós gostaaamos de você / Cooome mocotóóó / E bota pra foder!!!”. Aquilo mexeu com o brio do lagartense endiabrado. De repente, as dores sumiram e o abatimento deu lugar à fome de bola. Antes de descer a escada, olhou para arquibancada e fez um sinal para os torcedores, como se dissesse com a mão direita: “Me aguardem.”

Dentro do vestiário, Heleno Vianna estava inconformado:
“Se for pra continuar jogando desse jeito é melhor nem voltarmos pro segundo tempo. Vamos ficar por aqui mesmo. O vestiário tá bonito, foi reformado...”
Almeida, o capitão do time, pediu a palavra: “Professor, não tá dando pra jogar pelo meio. Precisa abrir o jogo pelas pontas: o lateral deles é fraco.”
Sergipano, que era desafeto declarado de Almeida, notou o olhar que este lhe direcionou enquanto falava com o treinador. Sergipano era ponta-esquerda e sabia que o recado era para ele. Mas Vianna rebateu com ironia:
“Pois é, meu filho. Eu sei disso. Todo mundo sabe disso. Mas olha aí o estado do nosso ponta valentão...”, mostrando o ferimento na perna do Sergipano.
Na mesma hora, o camisa 11 arrancou o esparadrapo da canela e deu uns tapas sobre o machucado: “Tô bom, já. Olha aí, não estou sentindo mais nada. Heleno, eu sei que fiz merda, mas deixa eu entrar nessa porra que eu vou pra cima deles!”
“Você não consegue nem andar direito, seu aloprado...”, respondeu Vianna, desanimado.
O médico do Flamengo, Dr. Célio Ribeiro, tratou de interromper: “Se entrar, eu não me responsabilizo! Esse cara não devia nem estar no banco”, disse, irritado.

O técnico rubro-negro era vaidoso, mas não orgulhoso. Aos 58 anos de idade e com larga experiência acumulada em quase duas décadas de carreira, sabia que precisava do Sergipano para virar aquele jogo. Por isso, decidiu acabar com o castigo e, assim que o doutor saiu de perto, mandou chamar o jogador para uma conversa particular num canto do vestiário: “Meu filho, cá entre nós, eu estou cagando para o que o doutor diz. Se deixar, ele veta até jogador com dor de corno. O que eu quero saber de você é o seguinte: tu se garante?”, perguntou Vianna, testando a determinação do seu ponta.
“Eu me garanto! O machucado tá feio, mas não quebrei nada. É decisão, Heleno. Depois desse jogo eu fico no sofá o tempo que o senhor quiser. Mas hoje, me deixa ir pro jogo que a torcida já tá gritando o meu nome lá fora. Além do mais, o Maguila guardou a minha marmita de sopa de mocotó. Vou dar umas colheradas e entrar no maior gás!”, afirmou, elétrico.
“Tudo bem. Mas vê lá, hein, rapaz. Você não é o marinheiro Popeye. Vai pra cima, mas vai com calma. E se sentir dor, me avisa logo. Vai pro jogo!”. E assim o treinador avisou ao time que Sergipano estava entrando para o segundo tempo no lugar de Zé Pedro. Todos, exceto Almeida, fizeram questão de demonstrar satisfação com sorrisos e gritos de incentivo.

Antes de subir para o campo, Sergipano pediu a Maguila, o roupeiro, que esquentasse a sopa no forninho de microondas. Enquanto esperava, abriu sua mochila e sacou um embrulho de plástico que continha pequenos pedaços de pimenta malagueta verde, o tempero que usava na sopa de mocotó. Retirou um pedaço do embrulho e guardou a pimenta dentro do punho cerrado. Cinco colheradas da sopa foram suficientes para que ele enchesse o peito de confiança. Em seguida, subiu a escada do vestiário e se posicionou no gramado sem retribuir o calor da torcida, que estava eufórica com a entrada do ídolo e agora confiava na virada. A chuva apertou.

No momento em que a bola rolou, Sergipano logo descobriu que o ferimento na canela incomodaria. Mas recebeu o primeiro passe de Almeida e devolveu rapidamente, criando a tabelinha. Almeida, o camisa 10 que gastava habilidade, chutou rente ao travessão. E os gritos das arquibancadas já ameaçavam estourar os tímpanos alheios.

Enquanto o jogo seguia, Sergipano espremia entre os dedos o pedaço de pimenta que trouxera do vestiário. No primeiro escanteio a favor do Flamengo, ele se fingiu de morto e estacionou ao lado da trave direita do goleiro do Botafogo, Henriques. Sabia que Almeida cobrava os escanteios mirando a marca de pênalti, para facilitar a cabeçada dos zagueiros rubro-negros, que eram bons nas jogadas aéreas. Sabia também que Henriques teria que sair do gol para tentar a defesa. Quando a bola saiu dos pés de Almeida e a movimentação começou dentro da área, o Sergipano, da maneira mais rápida e discreta que pôde, esfregou os dedos apimentados nos olhos do goleiro, no exato momento em que este subia para tentar a defesa. Logo em seguida, o camisa 11 lambeu os próprios dedos, na intenção de destruir a prova do crime. Ninguém dentro do estádio viu a traquinagem. Nem o juiz, nem os bandeirinhas, nem os outros jogadores. O próprio Henriques, só percebeu a ardência nos olhos durante o salto, quando a bola já estava praticamente na cabeça do zagueiro Jorjão. Gol do Flamengo. Jogo empatado.

A televisão mostrou seguidamente o replay do momento exato em que Sergipano levava os dedos aos olhos do goleiro no meio da confusão da pequena área. Mas no campo, o único a descobrir a traquinagem foi mesmo Henriques, que agonizava, jogado na grama. Indignado, o goleiro gritava: “Paraíba filho da puta! Tô cego, tô cego!”. Não demorou para que os jogadores do Botafogo tomassem conhecimento do ocorrido pela boca indignada do goleiro. Logo estava armado o tumulto. O capitão botafoguense, Mario Jorge, apontava para Sergipano e para Henriques, na tentativa de indicar ao árbitro o que havia acontecido. Sergipano foi obrigado a mostrar as mãos, que estavam limpas. Não havia prova de irregularidade. Nem mesmo os replays da TV conseguiram incriminar o atacante rubro-negro, conforme o veredicto que o inocentou no polêmico julgamento que se sucedeu à partida.

O jogo recomeçou após alguns minutos de paralisação. Aos 29, o lateral-esquerdo Tuca roubou a bola do atacante adversário e partiu em velocidade num contra-ataque em que havia dois defensores do Botafogo contra três atacantes flamenguistas. Tuca cortou para a direita e tirou um zagueiro da jogada. Sergipano, livre de marcação, levantou o braço pedindo o passe e recebeu a bola quase na meia-lua. Teve tempo de dominar e partir para dentro da área, mas foi impedido de chutar pelo carrinho certeiro de Henriques, que deslizou pelo gramado molhado e atingiu em cheio a canela contundida do atacante. Pênalti para o Flamengo.

Henriques foi expulso e Sergipano retirado de maca. O esparadrapo foi mais uma vez arrancado da canela do atacante e o sangue voltava a escorrer por ali. Do lado de fora do gramado, urrando de dor, ele assistiu à cobrança precisa da penalidade. Bola de um lado, goleiro reserva do outro. Sergipano estava fora de combate, mas o placar estava virado. Almeida não perdia pênaltis.

Revoltado, Henriques foi tirar satisfação com o Sergipano já fora do gramado. Maguila, o roupeiro, chupava uma laranja ao lado da maca em que o atacante estava estirado e foi logo se metendo entre os dois. O goleiro já chegava com o dedão da luva apontado para a cara de Sergipano, que o olhava com traços de deboche.
“Tu se acha malandro, né? Tu é safado!”, xingou o goleiro. “Tu é safado!”.
“Playboy frangueiro”, repetia o Sergipano.
Os dois já estavam cercados por repórteres e curiosos, mas continuaram a troca de ofensas sob a chuva de microfones. Um repórter de TV entrevistou Henriques, assim que conseguiram separá-los.
“Henriques, o que foi que aconteceu no lance do primeiro gol?”, perguntou.
“Esse safado... Não vale nada. Todo mundo sabe que ele joga sujo”.
“Mas o que foi que ele fez, Henriques?”, insistiu o jornalista.
“Na hora em que eu subi pra fazer a defesa, ele passou um sabão ou sei lá o quê nos meus olhos. Daí eu não consegui enxergar mais nada...” e saiu de cena resmungando.
O mesmo repórter procurou saber a versão do Sergipano.
“Sergipano, o Henriques disse que você esfregou alguma coisa nos olhos dele no lance do primeiro gol, é verdade?”
“Que nada. Todo mundo sabe que o Henriques é um chorão. O Botafogo já teve goleiros mais competentes, o Gonzaga, por exemplo”, retrucou, venenoso.

O Flamengo ainda marcou mais um gol, aos 43, em outro contra-ataque, desta vez puxado por Pereba, que entrara no lugar de Sergipano para segurar o jogo. O camisa 9, Tião, artilheiro do campeonato, completou de primeira o cruzamento rasteiro de Paulinho Lambreta. Flamengo 3 x 1 Botafogo, placar final. E a torcida flamenguista não se cansava de cantar o famoso coro em homenagem ao Sergipano, eleito herói do título: “Vaaamos, Sergipaaano / Nós gostaaamos de você / Cooome mocotóóó / E bota pra foder!!!”.

Zé McGill

* O vídeo dessa música estava no Youtube mas parece que mandaram tirar do ar... Só de pirraça, com vocês: Stretch - Why did you do it?






terça-feira, 31 de março de 2009

S E R G I P A N O


Comecei a escrever algo que pode vir a ser um livro...
Este seria o primeiro capítulo de SERGIPANO, um jogador de futebol arruaceiro e bom de bola, inspirado em Almir, o Pernambuquinho (o aloprado da foto acima). No segundo capítulo, bola rolando e mais confusão, sexo, música... Talvez seja um pouco grande para um blog, mas foda-se... Quem conseguir chegar até o final, sinta-se confortável para sugerir, criticar, sorrir, calar, assobiar, chutar, bocejar...

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SERGIPANO - CAPÍTULO I

Acordou com o rosto colado na calçada de pedras portuguesas. Sua visão se limitava ao que lhe permitia enxergar o olho esquerdo, pois o direito encontrava-se completamente cerrado, inchado pelas pancadas da briga em que se envolvera naquela madrugada. Mas o pior não eram os ferimentos na face. O que preocupava o Sergipano era a mancha de sangue que endurecia o tecido da calça jeans na altura de sua canela esquerda. Domingo tinha jogo. Final de campeonato.

O Sergipano era a grande estrela daquele time do Flamengo no campeonato carioca de 2026. Sua presença na decisão era fundamental para as pretensões da equipe e da torcida, que vivia fase de lua-de-mel com o time após uma década de frustrações. O treinador, Heleno Vianna, conhecendo a fama de arruaceiro do seu camisa 11, fizera recomendações explícitas de discilplina ao final do treino de sexta-feira: “Vai pra casa, toca uma punheta e dorme! Amanhã a gente se vê na concentração”.

Mas a vida noturna do Rio de Janeiro era uma tentação à qual Sergipano sucumbia com a maior impudência. Aos vinte e cinco anos de idade, experimentava a fama com uma sede quase vingativa de quem desperdiçara os anos de adolescência trabalhando no cultivo de tabaco, em Lagarto, sua cidade natal, no agreste sergipano. Sentia-se imbatível. Tinha dinheiro, uma casa de cinco quartos no Recreio dos Bandeirantes e uma caminhonete importada com tração nas quatro rodas.

Naquela noite de sexta-feira, o telefone celular do Sergipano tocou às 22:45hs, justamente no momento em que ele sorvia a última colherada da sopa de mocotó, seu prato predileto, que a cozinheira deixava pronta para os finais de semana antes de ir embora. A bina do aparelho identificava chamada de Gonzaga, ex-goleiro reserva do Botafogo e melhor amigo do Sergipano desde que este chegara ao Rio, havia quatro anos, contratado pelo clube alvinegro.

“Fala Gonzagão!”, saudou Sergipano, de boca cheia.
“Ô, barão, no domingo eu vou lá, hein! Quero ver você acabar com a raça do Henriques, aquele playboy...”, disse Gonzaga. Henriques era o atual goleiro titular do Botafogo. Fora ele quem tomara a vaga de Gonzaga, que estava sem clube havia cinco meses.
“Deixa comigo. Se depender de mim, a carreira do Henriques acaba no domingo”, respondeu Sergipano, cheio de malícia no sotaque nordestino, antes de completar: “Mas diga lá, o que é que tu manda?”
“Então, escuta só: lembra daquela moreninha que a gente conheceu no churrasco do Pereba, a Monica?”
“Aquela bunduda com cara de safada que eu trouxe aqui pra casa depois do churrasco? Lembro bem...”, respondeu Sergipano, largando a colher dentro da cumbuca de sopa.
“Então, encontrei com ela na praia. Me disse que ia passar lá na Baronezza, hoje à noite, com mais duas amigas. Vamos nessa?”
“Porra, Gonzagão, se aqueles putos dos fotógrafos me pegam no flagrante, o Heleno vai me dar o maior esporro, sei não...”.
“Deixa de viadagem, ô, barão! Não vai ter flagrante nenhum. Passo aí e te pego em meia hora, fechado?”, intimou o goleiro.
“Ô diabo... Vamos nessa. Vamos que aquela morena é gostosa e o mocotó já tá no sangue!”, exclamou, desligando o telefone.

Sergipano e Gonzaga chegaram à boate Baronezza já perto da meia-noite. O ambiente era escuro e enfumaçado, mas havia um canto na boate, perto do balcão do bar, que era mais iluminado. Foi para lá que os dois se dirigiram assim que chegaram. Gonzaga vestia uma jaqueta de couro marrom que não deixava espaço para o ar entre os braços musculosos de goleiro e a pele morta do boi. Tinha quase dois metros de altura, cabelos castanho-claros e um nariz muito esquisito, que, de tão curvado, quase tocava a pele entre o próprio e a boca. Sergipano tinha o biotipo típico de muitos nordestinos brasileiros: baixa estatura (um metro e sessenta e cinco centímetros de altura), tronco parrudo e olhar arredio, desconfiado. Trajava calça jeans azul clara e uma camisa social cor de abóbora.

O goleiro foi quem encostou os cotovelos no balcão para pedir a primeira rodada de bebidas: whisky duplo com energético para os dois. A música eletrônica que emanava dos alto-falantes contribuía para criar uma atmosfera luxuriosa, onde garotas de programa e turistas europeus movidos a drogas sintéticas roçavam-se uns nos outros sem que houvesse entre eles nenhuma troca de olhares. Sergipano terminava o segundo drinque quando avistou Monica e as duas amigas do outro lado da boate, cercadas por cinco jovens altos e praticamente albinos. Eram todos louros, com exceção do mais gordinho, de cabelo raspado, que falava e gesticulava sem parar.

“Gonzaga, olha lá a Monica.”, apontou Sergipano, dando uma leve cotovelada na costela do amigo.
“Ih, olha lá... e quem são os galegos?”, indagou Gonzaga, lançando um olhar assassino sobre o grupo de louros.
“Devem ser gringos, vamos dar um confere”.
Sergipano largou o copo vazio sobre o balcão e os dois se aproximaram do grupo. Logo descobriram que realmente eram estrangeiros, os jovens. Eles estavam flertando com o grupo de moças e arriscavam cantadas num português patético: “voucê eh queinte!”, dizia um deles para Monica. A moça correspondia com sorrisos de falsa modéstia e jogava o cabelão liso e negro para o lado, faceira. Sergipano percebeu o clima da conversa e decidiu chegar chutando a porta. Abordou a morena pelas costas, com as mãos nos quadris dela, e falou com a boca quase colada em seu ouvido: “Oi Moniquinha, lembra de mim?”. Gonzaga vinha logo atrás, de olho nas outras duas moças; uma ruiva, de cabelo curto e roupas de plástico modernosas, e outra morena, a mais baixinha das três, que tinha os braços cobertos por tatuagens coloridas e a minissaia mais mini da cidade.

“Sergipano! Claro que lembro de você!”, respondeu Monica, corando na face com o susto, para em seguida explicar aos gringos, em inglês: “Pessoal, este é o Sergipano, do Flamengo! Ele é um jogador de futebol muito famoso por aqui!”. Os gringos, que já haviam ficado pasmos com a intromissão descarada do jogador, não pareceram se animar com a informação. Responderam com um monótono “Oh...”. O mais gordinho ainda emendou: “We don’t like football”. E, mesmo sem saber falar inglês, Sergipano notou a hostilidade no tom de voz dos estrangeiros. “Qual é a desses gringos, Monica? Donti laike futebol? Que porra é essa?”, perguntou Sergipano, com os olhos vermelhos de sangue, encarando o gordinho.

Sabedora do histórico de brigas do jogador, Monica adivinhou a confusão iminente e tratou de mudar de assunto, dando as costas para os gringos e abrindo um sorriso nervoso: “Eles são da Noruega, nem sabem o que é futebol... Mas, então, domingo é dia, hein! Tá preparado?” Sergipano não respondeu, bufou. E não desgrudava os olhos do gordinho escandinavo, que retribuía a animosidade com o olhar. Gonzaga, que observava a tudo calado, interviu: “Vem, Monica, traz as tuas amigas e vamos tomar um drinque ali no bar. Bora, barão”.

Sergipano consentiu e já ia seguindo Gonzaga e as meninas na direção do bar, de mãos dadas com Monica. Mas no meio do caminho, um dos noruegueses – o mais alto e mais bêbado – se colocou no caminho do casal, encarando Monica e fingindo ignorar Sergipano. Com um sorriso sonso espalhado pela cara, ele decretou o início da confusão. Disse algo como: “Hey, baby, onde você vai? Vem com a gente.” E pronto. Sergipano estendeu o braço por entre as pernas do grandalhão e esmagou-lhe o saco com a palma da mão direita. “Ficou maluco, gringo?”, trovejou, mostrando os dentes. Em seguida, um copo de vidro explodiu no supercílio direito do jogador. Era o gordinho, que chegara por trás para acudir o amigo que gemia de dor com a língua de fora e corria sério risco de ficar estéril. O drinque gelado de vodca e suco de laranja que estava no copo de vidro se misturou ao sangue que escorria quente da cara do Sergipano. Este cambaleou por alguns segundos e não pôde testemunhar a voadora que Gonzaga aplicou no peito do gordinho.

A correria e gritaria que deram seguimento à confusão remetiam ao clima de desespero que se instala numa comunidade acometida por uma catástrofe natural. Caos total na pista de dança da Baronezza. Somente quando a pista esvaziou é que foi possível visualizar o massacre: o Sergipano estava montado sobre o peito do gordinho e, babando de ódio, emendava um soco após o outro na cara da vítima, já desacordada. Os cinco seguranças da boate tiveram trabalho para retirar o Sergipano de cima do gordinho. Quando conseguiram, precisaram carregá-lo pelos braços e pernas até a porta da boate. Um dos seguranças ainda levou uma mordida que quase lhe custou um pedaço da orelha.

Lá fora, na porta da boate, Gonzaga recebeu o Sergipano com o casaco de couro rasgado e uma linha fina de sangue escorrendo pelo nariz. Assustada, Monica examinava o olho direito do jogador, que por sorte não perdera a visão após ter um copo de vidro espatifado na cara. Nisso, um dos outros noruegueses surgiu do nada com um pedaço de madeira na mão. Sergipano estava, mais uma vez, de costas quando recebeu o golpe na canela esquerda e outro, logo em seguida, na parte posterior da cabeça. Desta vez, foi ao chão. Apagou por cerca de trinta segundos.

Quando acordou, com o rosto colado na calçada de pedras portuguesas, Sergipano estava rodeado por uma dúzia de fotógrafos. Os flashes disparados pelas câmeras contribuíam para piorar a sensação de tonteira que sofria. Gonzaga, revoltado, gritava: “Cai fora, seu bando de filhos da puta!”. Monica quase sorria, quase fazia pose para as câmeras. Sabia que as fotos estariam nas capas dos jornais do dia seguinte. E não deu outra, a manchete do principal jornal da cidade foi: SERGIPANO ESPANCADO NA VÉSPERA DA DECISÃO!

Zé McGill

Where is my mind?



quarta-feira, 18 de março de 2009

O DIA INTERNACIONAL DO FODA-SE


Fiquei sabendo que o próximo dia 28/03 será celebrado em várias cidades de todo o mundo como o Dia Internacional do Apagão. Parece que a idéia é que as pessoas desliguem as luzes de suas casas durante uma hora em nome da conservação da energia elétrica e preservação da natureza. Toda essa comoção me incentivou a lançar aqui, na Revista Foda-se, o primeiro Dia Internacional do Foda-se..

Isso mesmo, o Dia do Foda-se. E a data está marcada para 23 de março, uma segunda-feira (há dia que mereça mais um belo foda-se do que a segunda-feira?), e você está convidado a participar. A idéia é que todos abram as janelas de casa, do carro ou do trabalho, às 19:00hs (horário de Brasília), e gritem um "foda-se" bem bonito, com ardor. Para quem não puder gritar (os mudos também têm direito ao foda-se), fica liberado o foda-se silencioso, em pensamento. Imagine que coisa maravilhosa será o foda-se ecoando pelos quatro cantos do mundo: do Rio de Janeiro a Galdinópolis, de Barcelona a Lisboa, da Califórnia a Marrakesh, de Dudinka a Vladivostock!

Quem estiver caminhando na rua, melhor ainda: olhe para o céu, erga suas mãos bem alto e grite o seu “foda-se” para o mundo. Foda-se para os problemas da vida. Foda-se a crise econômica mundial. Foda-se Brasília. Foda-se o choque de ordem. Foda-se o Cuca, técnico do Flamengo, que não coloca o Jônatas para jogar. Foda-se aquela(e) ex-namorada(o) que te trocou por outro(a). Foda-se quem não gosta de massagem nos pés. Foda-se quem nunca contou uma mentira. E foda-se a Academia Brasileira de Letras, que não reconhece a beleza e o caráter libertário da expressão “foda-se”.

Há tanta mágica num foda-se! Eu, por exemplo, gosto de um foda-se com ponto de exclamação, mas prefiro os foda-ses com reticências, dormentes, indiferentes. Quando a situação exige agressividade, exclamação nele, muito bem. Mas ainda mais gostoso é proferir o foda-se com desdém, como resposta ao invés de imperativo: quando a professora reclama que você não fez o dever de casa, quando o chefe critica o seu trabalho, quando o William Bonner dá boa noite no Jornal Nacional...

Tomei o cuidado de pesquisar sobre a história do dia 23 de março no Wikipedia e não há nada que impeça o nosso empreendimento, pelo contrário. Que me perdoem Akira Kurosawa (o cineasta nipônico), Damon Albarn (vocalista do Blur) e Isaac Chansa (futebolista zambiano). Todos eles nasceram na data adotada. Em compensação, foi num dia 23/03 que o parlamento alemão concedeu plenos poderes ao governo de Hitler, Mussolini fundou seu movimento político fascista e JFK ampliou restrições comerciais contra Cuba. O foda-se vai cair feito uma vulva no calendário internacional!

Aliás, mate aula, falte ao trabalho, invente desculpas cretinas nesta segunda-feira. Diga que precisa levar sua avó à musculação, alegue suspeita sobre uma crescente epidemia de Febre Escarlate no condomínio, declare luto pela morte do Clodovil. O Dia Internacional do Foda-se será dia de alegria. Nosso foda-se ressoará isento de amarguras. Será, antes de tudo, a celebração original do próprio foda-se, esta arma de grosso calibre, dona de alcance superior ao de ogivas nucleares no que se refere à destruição de tudo aquilo que não presta. Portanto, no dia 23, prepare a sua espingarda do foda-se. Lustre-a com flanela, verifique a munição e aponte o cano na direção do seu alvo.

E que fique claro: não há na criação do Dia Internacional do Foda-se nenhum tipo de resposta ironizada ao Dia do Apagão. Nós até apoiamos a iniciativa. Mas o problema da preservação da energia e da natureza só começará a ser solucionado quando as questões do culto ao dinheiro e do avanço desenfreado da tecnologia em prol da ganância forem tratados com a atenção que merecem. A mobilização pelo Dia do Apagão serviu apenas como inspiração.

Se você – oh, leitor macambúzio! – nasceu no dia 23 de março e ficou ofendido com a data escolhida para o DIF, sinta-se livre para inventar o Dia Internacional do Corroda-se, ou do Saxofoda-se! Pode até ser na data do meu aniversário (27 de setembro). Mas se o Dia Internacional do Foda-se caísse na data do meu aniversário, eu me sentiria um privilegiado! Ah, só mais uma coisa... Caso ninguém se mobilize e grite o foda-se na janela, às 19:00hs desta segunda-feira, foda-se...

Zé McGill


* Aqui um vídeo da música Ndéleng Ndéleng, da espetaculosa Orchestra Baobab, de Senegal. Boa pedida para trilha sonora do Dia Internacional do Foda-se. A música estará no set do próximo PROGRAMA MAKULA, que vai ao ar toda quinta-feira na Rádio Gruta (www.radiogruta.com), às 15h, e é apresentado pelos DJs da Festa Makula: Zé McGill (Revista Foda-se), Lucio Branco (Soul, Baby, Soul!) e Gustavo Benjão (Do Amor)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

REVISTA FODA-SE RECOMENDA: 10 VÍDEOS PARA O SEU CARNAVAL

Tudo o que eu tinha a dizer sobre o carnaval já foi dito AQUI. Portanto, seguem abaixo dez vídeos do Youtube que são folia pura...


1 – Mussum tomando leite
O gênio, o genialzis! Um dos grandes ídolos da Revista Foda-se. Já parou pra pensar que o Mussum vivia falando de cachaça num programa que era assistido por milhões de criancinhas?




2 – Trote da Telerj
Escutei o já clássico trote da Telerj pela primeira vez no recreio do Colégio Andrews, de walkman, há quinze anos. Só lembro que me mijei de rir. E me mijo até hoje. Afinal, “grandes merdas ser adevogado, depois, todo adevogado é viado mesmo...”




3 – Como curtir as praias do Paraná
Alborghetti é a melhor tradução para o termo “escroto”. Quando eu e meu irmão éramos adolescentes (eu orelhudo, ele cabeçudo), parávamos o que estivéssesmos fazendo para assistir ao programa Cadeia, apresentado por ele na CNT.




4 – Senhor, nós estamos ao vivo!
O entrevistado se enrola no meio da resposta e pede para a repórter cortar a entrevista. Só que o lance era ao vivo...




5 – Lasier Martins tomando um choque
Eu nem sei quem é Lasier Martins, mas, Lasier, onde quer que você esteja, obrigado por este momento lindo. (Atenção para os gritinhos dele na hora do choque e para a cara da apresentadora do jornal...)




6 – Agnaldo Timóteo canta Poema de um bruto
Isto é Brasil!!! Esse clipe do Timóteo é de uma sinceridade que corta o coração. Ele joga comida para os cisnes, faz carinho nas crianças... e que letra bonita! Vai, Agnaldo: abra o seu coração para o povo brasileiro!




7 – Vovô é foda
Trecho de uma das dublagens do programa Tela Class, de Hermes e Renato (MTV). Minha parte favorita é a da fotografia. Se bem que também é bem legal a parte em que a Demi Moore vira de costas...




8 – Entrevista com Anderson
Este aqui foi afanado do Tico Tico, o blog do programa Ronca Ronca (Oi FM, toda terça-feira, 22h). É uma entrevista do jogador Anderson (Manchester United e Seleção Brasileira) para algum entrevistador inglês. Basta ler as legendas.




9 – Professor Gilmar dá esporro nos alunos
Gil Brother Away, o cara que esconde pigmeus africanos no jardim de casa, em Petrópolis. “Esse bando de badernista! Tudo uns aluno criado a leite com pêra, a Ovomaltino...”




10 – Costinha e as raspadinhas do Rio
Nem vou dizer nada. Quem não apertar o play, mesmo que já tenha visto antes, deu mole.





Zé McGill

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

DOSTOIÉVSKI NÃO COMBINA COM VERÃO


No sábado retrasado, acordei terrivelmente cedo, às nove horas. Levantei da cama, cocei a barriga e fui olhar a rua pela janela. Fazia um calor de derreter pirâmides e resolvi ir à praia. Antes de sair de casa, saquei da estante o livro Os irmãos Karamazóvi, do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Eu tenho uma dívida com o autor. Há alguns anos, cheguei a ler 80% do romance Crime e castigo, também escrito por ele, mas desisti perto do final. Naquela manhã de sábado, eu planejava acertar as contas com o Fiódor, na praia do Leblon.

E lá fui eu, de bermuda furada, sandália de dedo e remelas nos olhos caminhar pela calçada em direção à praia. Já escrevi por aqui que pelo menos metade da população do Leblon é composta de poodles. E eu odeio poodles. Pode ser que eu não tenha conhecido o poodle certo, aquele poodlezinho humilde, bacana. Tudo bem, mas o fato é que todos os poodles que já cruzaram o meu caminho carregavam um ar de nobreza aristocrática que me irrita. Pelas calçadas do Leblon, eles desfilam com sapatinhos de pelúcia e abanam aquele rabinho patético em formato de pompom. São tão limpinhos, tão fofinhos, tão escandalosos... Às vezes, tenho vontade de chutá-los.

Assim como nunca vi um filhote de pombo, também nunca vi um poodle vira-lata. Será que existem poodles em Realengo ou em Tomás Coelho ou em qualquer outro bairro fora da Zona Sul do Rio? Também nunca vi. Mas o Leblon está infestado deles. São poodles brancos, pretos, cinzas e poodles-humanos. Do magnata no apartamento de três andares com vista para o mar à madame-decadente-plastificada, são milhares de poodles. Posso resumir facilmente, em uma única palavra, o meu sentimento por esta raça: cólera, aversão, furor, desdém, repugnância, asco, náusea etc.

Mas, por que foi mesmo que comecei a falar sobre poodles? Esqueci... Aliás, lembrei: é que naquela manhã de sábado, enquanto eu esperava o sinal fechar para atravessar a última rua antes da praia, um poodle latiu e mostrou a gengiva pra mim. Numa reação instintiva de susto, levantei o livro do Fiódor com a mão direita e quase o atirei na cabeça do quadrúpede perfumado. Tá certo que o livro tem umas seiscentas páginas, é um tijolão, mas foi só uma ameaça, sou contra agressão aos animais. Mesmo assim, a dona do poodle, uma madame com seu visual de Dona Abóbora, ficou indignada. Pegou o cão no colo e saiu resmungando. Ela era mais poodle que o próprio poodle.

Finalmente pisei na areia quente. Aluguei uma cadeira e andei pra perto do mar enquanto os raios do sol reluziam com força sobre a capa vermelha do livro. A praia ainda não estava lotada e me animei com a perspectiva de ler um pouco sem muito barulho por perto. Dei um mergulho no mar e voltei para a cadeira de praia. Comecei a leitura e me lembrei, logo nas primeiras páginas que, para ler Dostoiévski, é necessário fazer uma cola: anotar os nomes e apelidos de todos os personagens numa folha de papel. Sim, porque a grande maioria dos personagens têm nomes tão modestos quanto Rodion Românovitch Raskólnikov e Aliéksiei Fiodórovitch Karamazov. E cada um tem o seu apelido; Ródion e Aliócha, neste caso, respectivamente.

Se o leitor não anota os nomes e apelidos para efeito de consulta, corre o risco de chegar à metade do livro e ficar completamente perdido. Foi o que aconteceu comigo quando li Crime e castigo. Faltavam umas cem páginas para o final quando comecei a me embolar com os nomes. Fiquei revoltado e joguei o livro num canto. Contudo, a capacidade do autor de transmitir a angústia naquela história me impressionou. Tanto que, prometi “dar uma segunda chance” ao Fiódor. Mas ali na praia, com suor escorrendo pela testa e um cheiro de queijo coalho impregnando o ambiente, percebi que seria difícil ler Os irmãos Karamazóvi.

A praia estava ficando cheia, o calor engrossava, o barulho ídem. Cheguei então a uma parte do livro em que a família Karamazóvi se reúne com o stáriets (um mentor eclesiástico dos monges) num mosteiro. Comecei a me sentir mal. Não sei porquê, mas qualquer história que envolva igreja, mosteiro ou religião me causa desconforto. Aliás, lembro que quando estive em Roma, no ano passado, achei o Vaticano uma bela merda. Entrei na Basílica de São Pedro, fiquei olhando aquele teto todo revestido em ouro e comecei a pensar na quantidade de vidas que aquela igreja custou. Saí em menos de dez minutos. Da igreja e do Vaticano. E foi no momento em que o pai dos Karamazóvi começava a armar a maior confusão no mosteiro que notei uma movimentação estranha ao meu redor, ali na praia.

Havia uma meia-dúzia de três ou quatro sujeitos com câmeras fotográficas nas mãos, todos olhando na mesma direção. Eram os paparazzi - esses indiscretos fotógrafos de celebridades. E o alvo era ninguém menos do que Luana Piovani, aquela pseudo-atriz que nem é tão gostosa assim. Luana é uma autêntica representante da raça poodle-leblonense e resolvera pegar um bronze com a sua tchurma a poucos metros de mim e dos Karamazóvi. Sacanagem, minha leitura foi pro espaço. O falatório e a quentura do meio-dia estavam me deixando zonzo. Senti ânsia de vômito e decidi fechar o livro do Fiódor para respirar um pouco de ar com fumaça de queijo coalho queimado e dar um último mergulho antes de ir embora.

Debaixo d’água, abri os olhos e comecei a pensar que, naquelas condições, a leitura mais adequada seria algo de conteúdo mais leve. Talvez Bukowski ou o caderno de esportes de algum jornal. Talvez nem isso. Leitura exige concentração, disciplina, entrega. Se o sujeito não estiver atento, não consegue ler nem o que está escrito na faixa daqueles aviões de propaganda que sobrevoam as praias cariocas nos finais de semana.

Cheguei em casa, tomei um banho gelado, liguei o ventilador no máximo e dormi ao som do Dub rockers delight, de Sly & Robbie, meu disco favorito de dub. Quando acordei, já era noite e eu estava meio febril por causa da aventura praiana ao lado dos poodles e dos Karamazóvi. Mas valeu para entender que praia, sol de quarenta graus e o verão carioca não combinam com Dostoiévski. Dali pra frente, engrenei no livro do Fiódor e já estou quase na metade, lendo sempre à noite, com o ventilador ligado no máximo e com o Frank Sinatra, o cachorro do meu avô (que não é poodle), sempre ao lado.

Zé McGill

*Aqui um vídeo caseiro da faixa Night of dub, do disco Dub rockers delight, de Sly & Robbie:




sábado, 31 de janeiro de 2009

M A K U L A














Macula foi um jogador de futebol que defendeu as cores do glorioso time do Bangu nos anos 1980 e 90. Ele também atuou por Vasco, Fluminense e Palmeiras, entre outros clubes, mas foi pelo Bangu que o meio-campista negro, esguio, parrudo e desengonçado cravou sua marca na memória dos torcedores dos grandes times do Rio. Macula era catimbeiro, malandro e bom de bola. Tinha fama de gente boa e vivia com um sorriso largo estampado na cara. Mas quando o Flamengo enfrentava o Bangu, eu tinha medo do Macula.

E atenção para esta informação de importância vital: segundo o site Wikipedia, atualmente, Macula trabalha no mercado imobiliário! Portanto, se você estiver procurando moradia e esbarrar com o carrasco de Moça Bonita, avise ao pessoal da festa MAKULA. Sim, Macula (com “k”) virou nome de festa e não foi por acaso. Foi, de fato, uma singela homenagem ao ex-jogador. E o pessoal da festa gostaria muito de ver o negão desfilar o seu sorriso imaculado pela pista na noite do evento.

A MAKULA, que estréia nesta sexta-feira (dia 06 de fevereiro), no segundo andar do Cine Lapa (RJ), é uma festa de música africana comandada pelos DJs Lucio Branco, Gustavo Benjão e Zé McGill. A ideia do nome MAKULA surgiu numa mesa do Bar do Mineiro, em Santa Teresa, após quatorze garrafas e meia de Antarctica Original. Mas a vontade de produzir uma festa 100% África surgiu um pouco antes, já que os três DJs são viciados em Fela Kuti, Manu Dibango, Daktaris, Antibalas, Mulatu Astatke e Orchestra Baobab, entre outros monstros da música do monumental continente crioulo.

Mas foi ali, no Bar do Mineiro, que o Lucio Branco começou a sugerir nomes para a festa, e botou na mesa duas opções: Maculelê (a dança de origem afro-indígena) e Makélélé (o jogador nascido no Congo, que defendia a seleção francesa). Na hora, gostei de Makélélé, mas pensei: “Foda-se a seleção francesa!”, e rebati: “Por que não MAKULA?”. E pronto, estava batizado o ritual rítmico que vai fazer a cabeça e os pés de quem já conhece o poder chacoalhante dos sons africanos e surpreender aqueles que pensam que do continente negro só sai batuque de macumba (não que ele não compareça na festa!). Ingressem na lista amiga (ver nosso contato abaixo – favor deixar nome e sobrenome)! Segue abaixo o release oficial da MAKULA, por Lucio Branco.

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A MAKULA, que tem sua primeira edição no 2º andar do Cine Lapa, dia 6 de fevereiro, uma 6ª feira, é basicamente uma festa de Afrobeat, gênero musical que assimila jazz, soulfunky e elementos propriamente africanos criado pelo nigeriano Fela Kuti. Também marcam presença nela alguns outros ritmos africanos como Highlife, Juju, Soukous, Räi e Kuduro.

Comparecem nos CDJs da MAKULA bandas e artistas como Matata, Kaleta, Antibalas Afrobeat Orchestra, Konono, Les Tetes Brulles, Super Rail Band, Babatunde Olatunji, Manu Dibango, King Sunny Ade, Joni Haastrup, Tony Allen, Miriam Makeba, Orlando Julius & His Afro Sounders, Femi Kuti, Wallias Band, Lafayette Afro Rock Band, African Brothers Band, Mulatu Astatke, The Daktaris, Jingo etc (além do referido fundador da banda Africa 70, obviamente) mostrando a potência dos sons e ritmos do continente negro num repertório muito pouco – quando nunca – executado pela grande maioria dos DJs cariocas, e mesmo pelos de outros estados do país.

A MAKULA tem em sua equipe de DJs: Gustavo Benjão (compositor e guitarrista do Conjunto Musical do Amor); Lucio Branco (festas SOUL, BABY, SOUL!, TREPIDANTE e BARRACUDA) e Zé McGill (festa ZAZUEIRA). Para criar o clima afro da noite, no telão são exibidos filmes temáticos como Music is the Weapon (documentário sobre Fela Kuti) e filmes etnográficos de Jean Rouch.

A grife BALACO, especializada em roupas e design de inspiração afro-brasileira, dá o tom geral da MAKULA. Além da projeção no telão das vinhetas assinadas pela estilista e designer da BALACO, Júlia Vidal, são produzidas por ela atrações que vão desde a caracterização da hostess à dos percussionistas que interagem com os DJs nas sessões de LivePA, assim como desfiles, exposições, decoração ambiente, cabeleireiras afro e a presença de dançarinos a caráter na pista. No dia 6 de fevereiro, no Cine Lapa, a BALACO traz e customiza elementos da rica cultura do continente negro para a MAKULA, numa parceria que confere a devida legitimidade a esta festa 100% África.

E atenção para a promoção: quem quiser dar um confere na MAKULA após o show da banda Little Joy, no Circo Voador, é só apresentar o canhoto do ingresso na entrada do Cine Lapa para pagar apenas R$10,00.

PS: A quem possa ocorrer que o nome da festa tenha relação com o craque do Bangu dos anos 1980/90, saiba que não há coincidência alguma nisso: trata-se mesmo de uma singela homenagem ao carrasco de Moça Bonita.

6ª feira, 06 de fevereiro
Cine Lapa (Av. Mem de Sá, 23 – Lapa) Tel. 2266-1014/2509-5166 – 2º andar
R$16,00 – R$14,00 c/ filipeta

Zé McGill

*Aqui o link para um vídeo de Many Things, música de Seun Kuti, que vai rolar bonito na MAKULA:




sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

NÃO LEIA ESTE TEXTO. É TUDO MENTIRA. MENTIRA.


2008 foi um ano muito bom pra mim. Ganhei muito dinheiro e trepei com uma meia-dúzia de oito ou nove mulheres gostosas. Meu time me deu muitas alegrias. Parei de fumar e beber. Escalei o monte Aconcágua. Atravessei o Canal da Mancha a nado. A Alessandra Negrini me deu mole numa festa. Consegui colocar todas as minhas idéias em ordem. Em 2009, não mentirei.

A gente mente muito mais do que pensa, apesar de pensarmos muito mais do que mentimos. Um gesto de cumprimento pode ser uma mentira. Um olhar, um pensamento pode ser uma mentira. A mentira não é dependente da palavra. É livre, e de vez em quando, liberta. Eu sempre tive essa mania feia de tentar ser verdadeiro e honesto com as pessoas o tempo todo. Sempre achei bonito isso de dizer o que penso, assim no estilo Romário. E estou cansado de me foder por causa disso.

Uma noite, há alguns anos, saí pra jantar com uma ex-namorada que andava meio insegura. O clima tava legal, rolaram uns beijinhos, umas cervejas e tal. Mas eis que, no final da noite, ela resolve testar a minha patética honestidade com aquele tipo de pergunta que não se faz. Com um sorriso no rosto, olhos nos olhos, ela pediu: “Diz a verdade: eu sou a mulher mais bonita e mais gostosa com quem você já ficou?”.

Gelei. Este é o típico momento em que a mentira é necessária, mesmo que não seja mentira. Porque mesmo que ela seja a mulher mais bonita e gostosa que você já conheceu, é necessário dizer que SIM com o maior grau de afetação possível (e aí, meu chapa, você já está mentindo), senão, ela pode ficar magoada.

Mas eu... tinha que ser verdadeiro! Dei um gole na cerveja, enchi o pulmão de fumaça e disse a ela que não, ela não era a mais bonita, mas era a mulher que eu mais amava nesse mundo (sou ou não sou um merda?). E nem era mentira. Na hora, ela até riu e tentou disfarçar o ódio, mas aquilo ficou lá, no fundo da cabeça dela até o dia em que ela me deu um pé na bunda. Agora já sei: da próxima vez, digo o que ela quiser escutar, seja ela um dragão-de-komodo ou uma flor. A verdade é um crime hediondo. A mentira é uma pequena contravenção.

Você diz que é feliz. Feliz nos seus relacionamentos, feliz no trabalho, na vida. Diz que acredita num monte de coisas porque aquilo te faz sentir-se melhor. Pois é. Melhor assim. Chega de condenar a mentira, por maior que ela seja. Vamos todos sair às ruas e mentir com sinceridade para os porteiros, padeiros, trocadores de ônibus. Fodam-se a culpa, a consciência, a ética e a moral. Vão todas pra puta que os pariu! Hoje e sempre é primeiro de abril.

Mark Twain (1835-1910), o escritor norte-americano, já dizia: “Se raças e povos inteiros conspiram para difundir gigantescas mentiras silenciosas no interesse das tiranias e dos impostores, por que nos importarmos com as bagatelas ditas pelos indivíduos? Por que havemos de dar a impressão de que abster-se da mentira é uma virtude? Por que nos enganamos dessa maneira? Por que não sermos honrados e sinceros, mentindo todas as vezes que tivermos oportunidade? Isto é... Por que não havemos de ser lógicos, mentindo constantemente ou então nunca mentindo? Creio que será apenas para recobrarmos forças e tirarmos dos lábios o sabor rançoso.”

Mentira boa foi a que eu contei no dia do alistamento para um oficial do exército brasileiro. Se algum milico ler isso aqui, posso me foder, mas foda-se, vamos lá. Eu sou daltônico e me orgulho disso. Tenho um amigo que, além de ser dois anos mais velho, também é daltônico e se livrou de servir o exército por causa disso. Foi ele quem me deu a dica de pegar um atestado de daltonismo com um oftalmologista. E foi o que eu fiz. Cheguei ao quartel com o atestado debaixo do braço.

Passei nos exames e questionários iniciais e estava ficando tenso, pois ao que tudo indicava, eu estava sobrando no grupo que iria servir. Só que, aos 45 do segundo tempo, um oficial virou-se para o meu grupo e perguntou: “Alguém aqui tem alguma deficiência, alguma doença? Se tiver, essa é a hora de falar”. Dei um passo à frente e respondi: “Eu tenho daltonismo”, e puxei o atestado do bolso. “Daltonismo? Que porra é essa, moleque?”, respondeu o oficial, com cara de nojo, enquanto lia o atestado. “Eu não sei diferenciar as cores com precisão”, aleguei, com raro senso didático.

“Não sabe ver cor? Tu tá de sacanagem. E qual é a cor disso aqui?”. O oficial apontou para a camisa de um dos outros caras do meu grupo. A camisa era branca, mas ele apontou para o mapa que ficava no centro da camisa. E aquela era uma das camisas mais comuns da época. Era uma camiseta da marca Company, com um mapa da Ilha Grande. E todo mundo sabia que aquele mapa era obviamente verde, inclusive eu. A maioria dos mapas é verde. Mas fiz um teatro. Fiquei olhando o desenho por alguns segundos, fazendo cara de esforço, até dizer: “Eu não tenho certeza, mas acho que é marrom”. Fui dispensado na mesma hora. Liberado, libertado pela mentira.

Mas como eu ia dizendo, em 2009, não mentirei. Vou torcer pro Vasco voltar à primeira divisão. Vou escalar o Aconcágua, de novo. Vou me matricular numa academia. Vou escrever um texto por dia. E vou parar de mandar o foda-se para os problemas da vida, porque isso é muito feio. De verdade.

Zé McGill

ps - a imagem acima é um teste para daltônicos. Se você enxerga ali no meio o número 5, bem-vindo ao mundo do daltonismo.

* Aqui o vídeo de uma música que tem alegrado as tardes deste início de ano. Rubinho Jacobina, Dr sabe tudo. E não é mentira!