quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

DOSTOIÉVSKI NÃO COMBINA COM VERÃO


No sábado retrasado, acordei terrivelmente cedo, às nove horas. Levantei da cama, cocei a barriga e fui olhar a rua pela janela. Fazia um calor de derreter pirâmides e resolvi ir à praia. Antes de sair de casa, saquei da estante o livro Os irmãos Karamazóvi, do russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Eu tenho uma dívida com o autor. Há alguns anos, cheguei a ler 80% do romance Crime e castigo, também escrito por ele, mas desisti perto do final. Naquela manhã de sábado, eu planejava acertar as contas com o Fiódor, na praia do Leblon.

E lá fui eu, de bermuda furada, sandália de dedo e remelas nos olhos caminhar pela calçada em direção à praia. Já escrevi por aqui que pelo menos metade da população do Leblon é composta de poodles. E eu odeio poodles. Pode ser que eu não tenha conhecido o poodle certo, aquele poodlezinho humilde, bacana. Tudo bem, mas o fato é que todos os poodles que já cruzaram o meu caminho carregavam um ar de nobreza aristocrática que me irrita. Pelas calçadas do Leblon, eles desfilam com sapatinhos de pelúcia e abanam aquele rabinho patético em formato de pompom. São tão limpinhos, tão fofinhos, tão escandalosos... Às vezes, tenho vontade de chutá-los.

Assim como nunca vi um filhote de pombo, também nunca vi um poodle vira-lata. Será que existem poodles em Realengo ou em Tomás Coelho ou em qualquer outro bairro fora da Zona Sul do Rio? Também nunca vi. Mas o Leblon está infestado deles. São poodles brancos, pretos, cinzas e poodles-humanos. Do magnata no apartamento de três andares com vista para o mar à madame-decadente-plastificada, são milhares de poodles. Posso resumir facilmente, em uma única palavra, o meu sentimento por esta raça: cólera, aversão, furor, desdém, repugnância, asco, náusea etc.

Mas, por que foi mesmo que comecei a falar sobre poodles? Esqueci... Aliás, lembrei: é que naquela manhã de sábado, enquanto eu esperava o sinal fechar para atravessar a última rua antes da praia, um poodle latiu e mostrou a gengiva pra mim. Numa reação instintiva de susto, levantei o livro do Fiódor com a mão direita e quase o atirei na cabeça do quadrúpede perfumado. Tá certo que o livro tem umas seiscentas páginas, é um tijolão, mas foi só uma ameaça, sou contra agressão aos animais. Mesmo assim, a dona do poodle, uma madame com seu visual de Dona Abóbora, ficou indignada. Pegou o cão no colo e saiu resmungando. Ela era mais poodle que o próprio poodle.

Finalmente pisei na areia quente. Aluguei uma cadeira e andei pra perto do mar enquanto os raios do sol reluziam com força sobre a capa vermelha do livro. A praia ainda não estava lotada e me animei com a perspectiva de ler um pouco sem muito barulho por perto. Dei um mergulho no mar e voltei para a cadeira de praia. Comecei a leitura e me lembrei, logo nas primeiras páginas que, para ler Dostoiévski, é necessário fazer uma cola: anotar os nomes e apelidos de todos os personagens numa folha de papel. Sim, porque a grande maioria dos personagens têm nomes tão modestos quanto Rodion Românovitch Raskólnikov e Aliéksiei Fiodórovitch Karamazov. E cada um tem o seu apelido; Ródion e Aliócha, neste caso, respectivamente.

Se o leitor não anota os nomes e apelidos para efeito de consulta, corre o risco de chegar à metade do livro e ficar completamente perdido. Foi o que aconteceu comigo quando li Crime e castigo. Faltavam umas cem páginas para o final quando comecei a me embolar com os nomes. Fiquei revoltado e joguei o livro num canto. Contudo, a capacidade do autor de transmitir a angústia naquela história me impressionou. Tanto que, prometi “dar uma segunda chance” ao Fiódor. Mas ali na praia, com suor escorrendo pela testa e um cheiro de queijo coalho impregnando o ambiente, percebi que seria difícil ler Os irmãos Karamazóvi.

A praia estava ficando cheia, o calor engrossava, o barulho ídem. Cheguei então a uma parte do livro em que a família Karamazóvi se reúne com o stáriets (um mentor eclesiástico dos monges) num mosteiro. Comecei a me sentir mal. Não sei porquê, mas qualquer história que envolva igreja, mosteiro ou religião me causa desconforto. Aliás, lembro que quando estive em Roma, no ano passado, achei o Vaticano uma bela merda. Entrei na Basílica de São Pedro, fiquei olhando aquele teto todo revestido em ouro e comecei a pensar na quantidade de vidas que aquela igreja custou. Saí em menos de dez minutos. Da igreja e do Vaticano. E foi no momento em que o pai dos Karamazóvi começava a armar a maior confusão no mosteiro que notei uma movimentação estranha ao meu redor, ali na praia.

Havia uma meia-dúzia de três ou quatro sujeitos com câmeras fotográficas nas mãos, todos olhando na mesma direção. Eram os paparazzi - esses indiscretos fotógrafos de celebridades. E o alvo era ninguém menos do que Luana Piovani, aquela pseudo-atriz que nem é tão gostosa assim. Luana é uma autêntica representante da raça poodle-leblonense e resolvera pegar um bronze com a sua tchurma a poucos metros de mim e dos Karamazóvi. Sacanagem, minha leitura foi pro espaço. O falatório e a quentura do meio-dia estavam me deixando zonzo. Senti ânsia de vômito e decidi fechar o livro do Fiódor para respirar um pouco de ar com fumaça de queijo coalho queimado e dar um último mergulho antes de ir embora.

Debaixo d’água, abri os olhos e comecei a pensar que, naquelas condições, a leitura mais adequada seria algo de conteúdo mais leve. Talvez Bukowski ou o caderno de esportes de algum jornal. Talvez nem isso. Leitura exige concentração, disciplina, entrega. Se o sujeito não estiver atento, não consegue ler nem o que está escrito na faixa daqueles aviões de propaganda que sobrevoam as praias cariocas nos finais de semana.

Cheguei em casa, tomei um banho gelado, liguei o ventilador no máximo e dormi ao som do Dub rockers delight, de Sly & Robbie, meu disco favorito de dub. Quando acordei, já era noite e eu estava meio febril por causa da aventura praiana ao lado dos poodles e dos Karamazóvi. Mas valeu para entender que praia, sol de quarenta graus e o verão carioca não combinam com Dostoiévski. Dali pra frente, engrenei no livro do Fiódor e já estou quase na metade, lendo sempre à noite, com o ventilador ligado no máximo e com o Frank Sinatra, o cachorro do meu avô (que não é poodle), sempre ao lado.

Zé McGill

*Aqui um vídeo caseiro da faixa Night of dub, do disco Dub rockers delight, de Sly & Robbie:




4 comentários:

Anônimo disse...

olha aqui meu filho,
eu tenho um poodle chamado Bartolomeu. ele é um doce, meu melor amigo.

aposto que o seu cachorro é um pitbul ou um dobermann...

p. disse...

e aE zÉ .....

imagina o Dosto na praia do Lebron
bebendo uma cervinha debaixo do guarda sol, vestido todo de preto, bizarro com a barba selvagem russa deixando qualquer Marcelo Camelo da vida com inveja..

Biu disse...

ainda bem que eu tenho uma bulldog inglesa, totalmente antissocial (segundo as novas regras ortográficas, argh!), feito a dona. Maneiro texto, Zé.

Anônimo disse...

Os poodles são incompreendidos.

Eu digo que raramente o problema é o cão e sim o dono, de quem o cão apenas reflete as psicopatias.

O que não quer dizer que quando eu vejo um poodle também não me dá vontade de chutar.

Reflexo, sei lá...

Acho que é aquele corte de cabelo ridículo.