Romário foi o maior jogador de futebol que eu vi em ação. Seria injusto dizer que foi o Zico, maior ídolo da história do meu Flamengo. Quando o camisa dez da Gávea estava no auge de sua forma, no início dos anos 1980, eu era um pirralho magricelo que fedia a Yakult e tinha as atenções voltadas para as corridas de chapinha na areia do playground do meu prédio, o Forte dos meus soldados de Playmobil e a Geléia de Mocotó Imbasa. Não entendia nada de futebol, apesar de já me considerar um rubro-negro fanático.
A partir dos dez anos de idade, já em 1987, comecei a tomar gosto pela coisa e passei a acompanhar de perto o dia-a-dia do Flamengo e do futebol em geral. Naquele mesmo ano, tive os primeiros espasmos de torcedor doente no chão da sala ao ver o meu time sagrar-se tetracampeão brasileiro, com Zico ainda em campo e jogando muito. E vi também o Vasco de Romário levar a nossa taça de campeão carioca. Ele como artilheiro, pelo segundo ano consecutivo.
Mas foi no ano seguinte que Romário entrou acidamente na minha memória, ao aplicar um balãozinho no goleiro Zé Carlos antes de tocar a bola com a cabeça para o fundo do barbante, no primeiro jogo da decisão do estadual de 1988. Até hoje sinto azia ao relembrar o lance. Depois veio o jogo do Cocada e o gol dele no último minuto, mas o que ficou foi a humilhação imposta pelo camisa onze do time de paneleiros portugueses na primeira partida da decisão. Até então, meu sentimento com relação àquele semi-anão metido a gostosão poderia ser resumido em uma palavra: ódio.
Para a minha sorte, e da torcida do Flamengo, o pigmeu artilheiro mudou-se para a Holanda pouco depois daquela final. Me limitei a assistir as traquinagens dele pelo PSV através dos Gols do Fantástico, aos domingos. A cada gol seu, soltava para mim mesmo um comentário do tipo: “Isso. Fica aí, seu escroto, do outro lado do mundo”. Mas foi numa dessas noites de domingo, entre uma dentada e outra na pizza de presunto, que gelei com o gol mais bonito da rodada. Léo Batista, o narrador-highlander, dizia algo próximo a: “E o Baixinho continua aprontando das suas na Espanha. Desta vez a vítima foi o Real Sociedad...”.
Naquele lance, já atuando pelo Barcelona, Romário recebeu um lançamento longo e matou a bola no peito como quem diz: “Vem cá neném, que o papai te dá um trato”. Em menos de um segundo, sem deixar a bola quicar na grama, emendou com a parte interna do pé direito e encobriu o goleiro, que, no susto, ainda tentou evitar o gol, mas tombou feito um saco de batatas na pequena área enquanto observava o objeto do seu fracasso invadir a rede. O lance todo não durou mais de quatro segundos. E ele fez aquilo a uma distância de cerca de dez metros da grande área. Sinistro, muuuito sinistro.
Foi automático. Depois daquele gol, passei a observar o duende marrento com outros olhos. Com um misto de admiração, incredulidade e carinho. Compreendi que, quando Romário estava em campo, não era o futebol que acontecia, mas a vida, a morte e todas emoções que vêm incluídas no pacote. Eu testemunhava os shows do Júnior no Maracanã, fiquei embasbacado com o gol do Maradona sobre a Inglaterra na copa de 86 (aquele em que ele dribla cinco antes de marcar) e lembrava do golaço do Van Basten pela Holanda, naquele chute sem ângulo. Mas o lance do Romário era especial. Sobretudo por sua frieza, antes, durante e depois do gol.
Frieza esta que seria explicitada na Copa do Mundo de 1994. Lembra da disputa de pênaltis, na final contra a Itália? Lembra como o Romário caminhou devagar e rebolativo para o local da cobrança? Lembra como ele chutou e olhou a bola bater caprichosamente na trave antes de entrar? E, finalmente, lembra como ele andou de volta para o centro do gramado, após cumprir sua missão, sem abrir um sorriso nem soltar uma bufada de alívio? Pois é. Foi assim que ele terminou de ganhar a Copa para o Brasil. As defesas do Tafarel, o comando do Dunga e a habilidade do Bebeto foram importantes, mas sem o Romário, não teríamos escutado o Galvão Bueno berrar bisonhamente enquanto aplicava uma gravata no Pelé: “É tetraaa! É tetraaa! É tetraaa!”.
Seis meses depois da Copa, Romário chegava ao Flamengo. Acabara de ser eleito o melhor jogador do mundo. Quando ele vestiu pela primeira vez o manto sagrado, as mágoas do passado viraram fumaça. Foram poucos títulos relevantes nas quatro temporadas em que defendeu o Rubro-negro, mas em compensação, fomos presenteados com o elástico sobre o Amaral, a sagacidade oportunista diante da falha do Márcio Teodoro, uma voadora no peito do gigante covarde do Vélez Sarsfield e quatro artilharias consecutivas do Campeonato Carioca. Ah, e ainda fomos à forra com os vascaínos. Perdi a conta das vezes em que vi o pigmeu mandar a torcida bigoduda calar a boca no Maracanã.
Ontem, 14 de abril de 2008, Romário anunciou o encerramento da carreira, aos 42 anos de idade. Pena que ele não chorou durante a entrevista. Eu sempre vibrei com o choro sincero do marrentinho. Dentro de campo, era um matador gelado. Mas fora dele, um coração mole e uma sinceridade transbordante.
Romário me ensinou duas coisas: a primeira, é que a humildade é facultativa diante do gênio. A marra dele sempre foi justificada pelos gols que fazia e pela coragem nas atitudes e declarações. O segundo ensinamento foi dado ao longo dos anos, mas principalmente no final da carreira, quando, já acima da casa dos quarenta, chegou ao milésimo gol e provou que, para o jogador de futebol, a inteligência é mais importante do que a forma física ou a habilidade.
Fica aqui a homenagem da Revista Foda-se ao pigmeu artilheiro. E a certeza de que jamais surgirá no futebol alguém como ele.
A partir dos dez anos de idade, já em 1987, comecei a tomar gosto pela coisa e passei a acompanhar de perto o dia-a-dia do Flamengo e do futebol em geral. Naquele mesmo ano, tive os primeiros espasmos de torcedor doente no chão da sala ao ver o meu time sagrar-se tetracampeão brasileiro, com Zico ainda em campo e jogando muito. E vi também o Vasco de Romário levar a nossa taça de campeão carioca. Ele como artilheiro, pelo segundo ano consecutivo.
Mas foi no ano seguinte que Romário entrou acidamente na minha memória, ao aplicar um balãozinho no goleiro Zé Carlos antes de tocar a bola com a cabeça para o fundo do barbante, no primeiro jogo da decisão do estadual de 1988. Até hoje sinto azia ao relembrar o lance. Depois veio o jogo do Cocada e o gol dele no último minuto, mas o que ficou foi a humilhação imposta pelo camisa onze do time de paneleiros portugueses na primeira partida da decisão. Até então, meu sentimento com relação àquele semi-anão metido a gostosão poderia ser resumido em uma palavra: ódio.
Para a minha sorte, e da torcida do Flamengo, o pigmeu artilheiro mudou-se para a Holanda pouco depois daquela final. Me limitei a assistir as traquinagens dele pelo PSV através dos Gols do Fantástico, aos domingos. A cada gol seu, soltava para mim mesmo um comentário do tipo: “Isso. Fica aí, seu escroto, do outro lado do mundo”. Mas foi numa dessas noites de domingo, entre uma dentada e outra na pizza de presunto, que gelei com o gol mais bonito da rodada. Léo Batista, o narrador-highlander, dizia algo próximo a: “E o Baixinho continua aprontando das suas na Espanha. Desta vez a vítima foi o Real Sociedad...”.
Naquele lance, já atuando pelo Barcelona, Romário recebeu um lançamento longo e matou a bola no peito como quem diz: “Vem cá neném, que o papai te dá um trato”. Em menos de um segundo, sem deixar a bola quicar na grama, emendou com a parte interna do pé direito e encobriu o goleiro, que, no susto, ainda tentou evitar o gol, mas tombou feito um saco de batatas na pequena área enquanto observava o objeto do seu fracasso invadir a rede. O lance todo não durou mais de quatro segundos. E ele fez aquilo a uma distância de cerca de dez metros da grande área. Sinistro, muuuito sinistro.
Foi automático. Depois daquele gol, passei a observar o duende marrento com outros olhos. Com um misto de admiração, incredulidade e carinho. Compreendi que, quando Romário estava em campo, não era o futebol que acontecia, mas a vida, a morte e todas emoções que vêm incluídas no pacote. Eu testemunhava os shows do Júnior no Maracanã, fiquei embasbacado com o gol do Maradona sobre a Inglaterra na copa de 86 (aquele em que ele dribla cinco antes de marcar) e lembrava do golaço do Van Basten pela Holanda, naquele chute sem ângulo. Mas o lance do Romário era especial. Sobretudo por sua frieza, antes, durante e depois do gol.
Frieza esta que seria explicitada na Copa do Mundo de 1994. Lembra da disputa de pênaltis, na final contra a Itália? Lembra como o Romário caminhou devagar e rebolativo para o local da cobrança? Lembra como ele chutou e olhou a bola bater caprichosamente na trave antes de entrar? E, finalmente, lembra como ele andou de volta para o centro do gramado, após cumprir sua missão, sem abrir um sorriso nem soltar uma bufada de alívio? Pois é. Foi assim que ele terminou de ganhar a Copa para o Brasil. As defesas do Tafarel, o comando do Dunga e a habilidade do Bebeto foram importantes, mas sem o Romário, não teríamos escutado o Galvão Bueno berrar bisonhamente enquanto aplicava uma gravata no Pelé: “É tetraaa! É tetraaa! É tetraaa!”.
Seis meses depois da Copa, Romário chegava ao Flamengo. Acabara de ser eleito o melhor jogador do mundo. Quando ele vestiu pela primeira vez o manto sagrado, as mágoas do passado viraram fumaça. Foram poucos títulos relevantes nas quatro temporadas em que defendeu o Rubro-negro, mas em compensação, fomos presenteados com o elástico sobre o Amaral, a sagacidade oportunista diante da falha do Márcio Teodoro, uma voadora no peito do gigante covarde do Vélez Sarsfield e quatro artilharias consecutivas do Campeonato Carioca. Ah, e ainda fomos à forra com os vascaínos. Perdi a conta das vezes em que vi o pigmeu mandar a torcida bigoduda calar a boca no Maracanã.
Ontem, 14 de abril de 2008, Romário anunciou o encerramento da carreira, aos 42 anos de idade. Pena que ele não chorou durante a entrevista. Eu sempre vibrei com o choro sincero do marrentinho. Dentro de campo, era um matador gelado. Mas fora dele, um coração mole e uma sinceridade transbordante.
Romário me ensinou duas coisas: a primeira, é que a humildade é facultativa diante do gênio. A marra dele sempre foi justificada pelos gols que fazia e pela coragem nas atitudes e declarações. O segundo ensinamento foi dado ao longo dos anos, mas principalmente no final da carreira, quando, já acima da casa dos quarenta, chegou ao milésimo gol e provou que, para o jogador de futebol, a inteligência é mais importante do que a forma física ou a habilidade.
Fica aqui a homenagem da Revista Foda-se ao pigmeu artilheiro. E a certeza de que jamais surgirá no futebol alguém como ele.
Zé McGill
* Aqui está o vídeo com o gol antológico de Romário pelo Barcelona:
3 comentários:
Muito manera a retrospectiva Romariana na tua vida..
..mas preciso discordar do teu coração.
O meu coração é do Zicão.
Abraço Parça !
Valeu Pablo!
É isso aí. Confesso que me sinto um pouco culpado por colocar o Pigmeu à frente do Galinho, mas...
abs
MCGILL
"Papai do céu olhou lá de cima e falou: esse é o cara"
Baixinho
Quer mais Romário que isso?
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