Amanhã vôo para Barcelona. Vou cair fora por um tempo e não sei quando poderei atualizar a Revista Foda-se. Talvez o faça com pequenas notas para registrar a viagem, que tem garantidos no roteiro Espanha, Itália e Inglaterra. A passagem de volta está marcada para cinco de junho, mas isto é apenas uma data.
Minha banda acabou, meu casamento idem e não possuo vínculo empregatício. Portanto, não há nada que me prenda ao Brasil. Minto. Tem o Flamengo. Não por esse Campeonato Carioca patético em que os times grandes não jogam fora de casa, mas pela Libertadores. Por mim, o Botafogo pode levar o Carioca. Estou cagando. Até porque, toda vez que o Flamengo ganha o Estadual, calça um salto alto e fica se achando o fodão. Depois, se estrepa no Brasileiro.
Fora o Flamengo, sentirei falta também da Antarctica Original e da Bohemia. Já provei cervejas do mundo inteiro e, até a presente data, não encontrei nada parecido. As cachoeiras do Horto – melhor lugar do Rio de Janeiro – também deixarão saudades. E tem ainda os amigos e o Frank Sinatra. Frank, é um cachorro de dois anos e meio, da raça Golden Retriver. O meu melhor amigo nos últimos meses. Quando fico pra baixo, ele chega com cara de cão abandonado e pousa o queixo pesado no meu peito. Quando tudo vai bem, o Frank balança o rabo freneticamente e destrói tudo que estiver ao seu alcance. Ele está aqui agora, do meu lado, e não quer me deixar escrever. Já babou toda a tela do laptop.
Na bagagem, levo pouca roupa e alguns livros. Entre eles, As vinhas da ira, de John Steinbeck. Ainda estou nos primeiros capítulos, mas já sei que, quando terminar a leitura, vou colocá-lo na lista dos meus dez favoritos, que fica registrada neste link à direita, o do perfil. Levo também O estrangeiro, de Albert Camus, o livro que inspirou a música Killing an Arab, do The Cure. A mochila vai abarrotada de encomendas do meu irmão, que mora em Barcelona há quase dois anos. Tem uma barra gigante de Diamante Negro, um par de sandálias Havaianas brancas, o livro do Tim Maia e um pacote de frutas cristalizadas (!). Os fetiches que a saudade da pátria inspiram em um indivíduo são uma comédia.
Sempre achei uma frescura essa história de mp3 player. Gosto de escutar música com os ouvidos bem abertos, sem headphones. Mas para uma viagem longa, até que o aparelho será útil. Comprei-o por R$40, no camelódromo da Uruguaiana. Cabem umas 250 músicas e o repertório já está fechado. Tem de João Donato a Bezerra da Silva. De Carlos Gardel a Gotan Project. De Elvis a Squirrel Nut Zippers. De Gabriel Muzak a Ultraje a Rigor. De Shuggie Ottis a Skip James. De SereS a Fela Kuti. De Toots & The Maitals a Skatalites. De Sly & Robbie a New York Ska Jazz Ensemble. De WAR a Mulatu Astatke. De Pixies a The Who. De John Frusciante a Johnny Cash. E tem uma porrada de faixas da Amy Winehouse – a melhor coisa que aconteceu na música neste século – incluindo umas cinco versões de Valerie.
Voltando ao roteiro. Chego em Barcelona na segunda-feira e fico até o dia 07 de maio. Não conheço ninguém que já tenha passado por lá e não considere Barcelona uma das cidades mais legais do mundo. Veremos. E veremos também Barcelona vs. Valencia, no estádio Camp Nou, a 04 de maio. Depois parto para Roma, onde ficarei por dois dias, antes de tomar o trem para a Toscana. Mora lá, em Lucca, um primo escritor que só conheço por e-mail. Vou aproveitar para ir a Florença, que fica ali perto. Em seguida, Londres. A expectativa é grande por conhecer o berço do Rock n Roll. Vou visitar outro primo, um paulista que não vejo há anos e que, dizem, está ficando famoso na cena local como DJ de música eletrônica. Serão onze dias em Londres.
Depois, volto para Barcelona e devo ir até a Alemanha, conhecer a namorada do meu irmão e visitar uma amiga trapezista que está num circo, em Berlim. Por último, a azeitona da empada, o lugar que mais me atrai, não sei por quê motivo, em todo este roteiro: o Marrocos. Mas isso tudo, é claro, se eu conseguir passar por todas as fronteiras sem problemas. Dizem que estão apertando o cerco contra os imigrantes, especialmente na Espanha. É triste isso. O mundo não deveria ter fronteiras. O cidadão deveria ser livre para poder passar por qualquer território do planeta sem precisar apresentar documento e... dinheiro. Sim. É preciso comprovar que há dinheiro em caixa para gastar no país visitado. Muito triste.
Estou decorando as minha linhas para o diálogo teatral das fronteiras a ser travado com os agentes de imigração. Estar desempregado é um perigo nesta hora. Por isso, acho que vou dar uma resposta que sempre quis, mas nunca tive coragem. Antes de sair do meu último emprego, resolvi fazer vários exames médicos para aproveitar o plano de saúde. Toda vez que eu chegava no consultório, era submetido a um interrogatório intrigante. A última pergunta era sempre a mesma: “Qual é sua profissão?”. No Gastro, fiquei pensando: “que porra o meu emprego tem a ver com o meu pâncreas?”. Minha vontade era responder o seguinte: “Sou astronauta”. Mas ainda não tive coragem. Fui acometido pela mesma vontade em todos os outros consultórios. Quem sabe mando essa para o agente espanhol.
Se não quiserem me receber em seu precioso país porque estou desempregado, FODAM-SE. Volto pra casa, numa boa. Mas suponho que não terei muitos problemas, uma vez que possuo passaporte norte-americano. Sou formado em jornalismo, mas não me orgulho muito disso. A principal coisa que aprendi na faculdade foi que nunca se deve acreditar no que é dito ou escrito por um jornalista. Aliás, desconfiem do que é escrito aqui na Revista Foda-se. Algumas vezes exagero, omito, minto, engano. Portanto, não gosto de dizer que sou jornalista. Nem numa fronteira. Vou concretizar o meu fetiche. Vou dizer que sou astronauta. Mas posso estar mentindo...
Levo no bolso praticamente todas as minhas últimas economias. O pouco que consegui juntar do meu último emprego. Sorte que as passagens aéreas internas da Europa custam zero Euros. Pois é, acredite: Comprei as passagens para Itália e Inglaterra por zero Euros, e mais uma merreca em taxas (Aqui a dica: www.ryanair.com). Mas, de qualquer maneira, sei que na volta estarei mais liso que o cabelo da Catherine Boceta Jones. Isto é, se eu voltar. No fundo, levo a esperança de encontrar alguma coisa que me faça ficar por lá por um tempo. Quem sabe não me apaixono por um camelo no Marrocos?
Isto não é um adeus, mas preciso agradecer por todas as mensagens que tenho recebido através da Revista Foda-se, no Orkut e no Gmail. A maioria delas, de incentivo e congratulações. E algumas malcriadas também, que são sempre tão bem vindas quanto qualquer outra. Nesta semana, ultrapassamos o incrível número de mil visitantes únicos! São mais de mil desocupados que leram o que eu escrevo por aqui. Vocês não têm nada melhor pra fazer não? De qualquer modo, obrigado. Ao lado dos discos que gravei com as duas bandas que tive, SereS e Gentle Pains, esta revista é um dos orgulhos que carrego. Descobri com ela que vou tentar ganhar a vida escrevendo. Sei que vou passar sufoco, mas... foda-se.
Zé McGill
* Para ser informado sobre as atualizações da Revista Foda-se, escreva um e-mail para revistafodase@gmail.com, com o assunto “Foda-se”. Ou entre na comunidade do Orkut: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=46908949
* Amy Winehouse, Valerie - http://www.youtube.com/watch?v=lqSKVv6YO8g
* John Frusciante, How Deep Is Your Love - http://www.youtube.com/watch?v=-tKQWvNZT0k
domingo, 20 de abril de 2008
A S T R O N A U T A
terça-feira, 15 de abril de 2008
ADEUS, PIGMEU ARTILHEIRO
Romário foi o maior jogador de futebol que eu vi em ação. Seria injusto dizer que foi o Zico, maior ídolo da história do meu Flamengo. Quando o camisa dez da Gávea estava no auge de sua forma, no início dos anos 1980, eu era um pirralho magricelo que fedia a Yakult e tinha as atenções voltadas para as corridas de chapinha na areia do playground do meu prédio, o Forte dos meus soldados de Playmobil e a Geléia de Mocotó Imbasa. Não entendia nada de futebol, apesar de já me considerar um rubro-negro fanático.
A partir dos dez anos de idade, já em 1987, comecei a tomar gosto pela coisa e passei a acompanhar de perto o dia-a-dia do Flamengo e do futebol em geral. Naquele mesmo ano, tive os primeiros espasmos de torcedor doente no chão da sala ao ver o meu time sagrar-se tetracampeão brasileiro, com Zico ainda em campo e jogando muito. E vi também o Vasco de Romário levar a nossa taça de campeão carioca. Ele como artilheiro, pelo segundo ano consecutivo.
Mas foi no ano seguinte que Romário entrou acidamente na minha memória, ao aplicar um balãozinho no goleiro Zé Carlos antes de tocar a bola com a cabeça para o fundo do barbante, no primeiro jogo da decisão do estadual de 1988. Até hoje sinto azia ao relembrar o lance. Depois veio o jogo do Cocada e o gol dele no último minuto, mas o que ficou foi a humilhação imposta pelo camisa onze do time de paneleiros portugueses na primeira partida da decisão. Até então, meu sentimento com relação àquele semi-anão metido a gostosão poderia ser resumido em uma palavra: ódio.
Para a minha sorte, e da torcida do Flamengo, o pigmeu artilheiro mudou-se para a Holanda pouco depois daquela final. Me limitei a assistir as traquinagens dele pelo PSV através dos Gols do Fantástico, aos domingos. A cada gol seu, soltava para mim mesmo um comentário do tipo: “Isso. Fica aí, seu escroto, do outro lado do mundo”. Mas foi numa dessas noites de domingo, entre uma dentada e outra na pizza de presunto, que gelei com o gol mais bonito da rodada. Léo Batista, o narrador-highlander, dizia algo próximo a: “E o Baixinho continua aprontando das suas na Espanha. Desta vez a vítima foi o Real Sociedad...”.
Naquele lance, já atuando pelo Barcelona, Romário recebeu um lançamento longo e matou a bola no peito como quem diz: “Vem cá neném, que o papai te dá um trato”. Em menos de um segundo, sem deixar a bola quicar na grama, emendou com a parte interna do pé direito e encobriu o goleiro, que, no susto, ainda tentou evitar o gol, mas tombou feito um saco de batatas na pequena área enquanto observava o objeto do seu fracasso invadir a rede. O lance todo não durou mais de quatro segundos. E ele fez aquilo a uma distância de cerca de dez metros da grande área. Sinistro, muuuito sinistro.
Foi automático. Depois daquele gol, passei a observar o duende marrento com outros olhos. Com um misto de admiração, incredulidade e carinho. Compreendi que, quando Romário estava em campo, não era o futebol que acontecia, mas a vida, a morte e todas emoções que vêm incluídas no pacote. Eu testemunhava os shows do Júnior no Maracanã, fiquei embasbacado com o gol do Maradona sobre a Inglaterra na copa de 86 (aquele em que ele dribla cinco antes de marcar) e lembrava do golaço do Van Basten pela Holanda, naquele chute sem ângulo. Mas o lance do Romário era especial. Sobretudo por sua frieza, antes, durante e depois do gol.
Frieza esta que seria explicitada na Copa do Mundo de 1994. Lembra da disputa de pênaltis, na final contra a Itália? Lembra como o Romário caminhou devagar e rebolativo para o local da cobrança? Lembra como ele chutou e olhou a bola bater caprichosamente na trave antes de entrar? E, finalmente, lembra como ele andou de volta para o centro do gramado, após cumprir sua missão, sem abrir um sorriso nem soltar uma bufada de alívio? Pois é. Foi assim que ele terminou de ganhar a Copa para o Brasil. As defesas do Tafarel, o comando do Dunga e a habilidade do Bebeto foram importantes, mas sem o Romário, não teríamos escutado o Galvão Bueno berrar bisonhamente enquanto aplicava uma gravata no Pelé: “É tetraaa! É tetraaa! É tetraaa!”.
Seis meses depois da Copa, Romário chegava ao Flamengo. Acabara de ser eleito o melhor jogador do mundo. Quando ele vestiu pela primeira vez o manto sagrado, as mágoas do passado viraram fumaça. Foram poucos títulos relevantes nas quatro temporadas em que defendeu o Rubro-negro, mas em compensação, fomos presenteados com o elástico sobre o Amaral, a sagacidade oportunista diante da falha do Márcio Teodoro, uma voadora no peito do gigante covarde do Vélez Sarsfield e quatro artilharias consecutivas do Campeonato Carioca. Ah, e ainda fomos à forra com os vascaínos. Perdi a conta das vezes em que vi o pigmeu mandar a torcida bigoduda calar a boca no Maracanã.
Ontem, 14 de abril de 2008, Romário anunciou o encerramento da carreira, aos 42 anos de idade. Pena que ele não chorou durante a entrevista. Eu sempre vibrei com o choro sincero do marrentinho. Dentro de campo, era um matador gelado. Mas fora dele, um coração mole e uma sinceridade transbordante.
Romário me ensinou duas coisas: a primeira, é que a humildade é facultativa diante do gênio. A marra dele sempre foi justificada pelos gols que fazia e pela coragem nas atitudes e declarações. O segundo ensinamento foi dado ao longo dos anos, mas principalmente no final da carreira, quando, já acima da casa dos quarenta, chegou ao milésimo gol e provou que, para o jogador de futebol, a inteligência é mais importante do que a forma física ou a habilidade.
Fica aqui a homenagem da Revista Foda-se ao pigmeu artilheiro. E a certeza de que jamais surgirá no futebol alguém como ele.
A partir dos dez anos de idade, já em 1987, comecei a tomar gosto pela coisa e passei a acompanhar de perto o dia-a-dia do Flamengo e do futebol em geral. Naquele mesmo ano, tive os primeiros espasmos de torcedor doente no chão da sala ao ver o meu time sagrar-se tetracampeão brasileiro, com Zico ainda em campo e jogando muito. E vi também o Vasco de Romário levar a nossa taça de campeão carioca. Ele como artilheiro, pelo segundo ano consecutivo.
Mas foi no ano seguinte que Romário entrou acidamente na minha memória, ao aplicar um balãozinho no goleiro Zé Carlos antes de tocar a bola com a cabeça para o fundo do barbante, no primeiro jogo da decisão do estadual de 1988. Até hoje sinto azia ao relembrar o lance. Depois veio o jogo do Cocada e o gol dele no último minuto, mas o que ficou foi a humilhação imposta pelo camisa onze do time de paneleiros portugueses na primeira partida da decisão. Até então, meu sentimento com relação àquele semi-anão metido a gostosão poderia ser resumido em uma palavra: ódio.
Para a minha sorte, e da torcida do Flamengo, o pigmeu artilheiro mudou-se para a Holanda pouco depois daquela final. Me limitei a assistir as traquinagens dele pelo PSV através dos Gols do Fantástico, aos domingos. A cada gol seu, soltava para mim mesmo um comentário do tipo: “Isso. Fica aí, seu escroto, do outro lado do mundo”. Mas foi numa dessas noites de domingo, entre uma dentada e outra na pizza de presunto, que gelei com o gol mais bonito da rodada. Léo Batista, o narrador-highlander, dizia algo próximo a: “E o Baixinho continua aprontando das suas na Espanha. Desta vez a vítima foi o Real Sociedad...”.
Naquele lance, já atuando pelo Barcelona, Romário recebeu um lançamento longo e matou a bola no peito como quem diz: “Vem cá neném, que o papai te dá um trato”. Em menos de um segundo, sem deixar a bola quicar na grama, emendou com a parte interna do pé direito e encobriu o goleiro, que, no susto, ainda tentou evitar o gol, mas tombou feito um saco de batatas na pequena área enquanto observava o objeto do seu fracasso invadir a rede. O lance todo não durou mais de quatro segundos. E ele fez aquilo a uma distância de cerca de dez metros da grande área. Sinistro, muuuito sinistro.
Foi automático. Depois daquele gol, passei a observar o duende marrento com outros olhos. Com um misto de admiração, incredulidade e carinho. Compreendi que, quando Romário estava em campo, não era o futebol que acontecia, mas a vida, a morte e todas emoções que vêm incluídas no pacote. Eu testemunhava os shows do Júnior no Maracanã, fiquei embasbacado com o gol do Maradona sobre a Inglaterra na copa de 86 (aquele em que ele dribla cinco antes de marcar) e lembrava do golaço do Van Basten pela Holanda, naquele chute sem ângulo. Mas o lance do Romário era especial. Sobretudo por sua frieza, antes, durante e depois do gol.
Frieza esta que seria explicitada na Copa do Mundo de 1994. Lembra da disputa de pênaltis, na final contra a Itália? Lembra como o Romário caminhou devagar e rebolativo para o local da cobrança? Lembra como ele chutou e olhou a bola bater caprichosamente na trave antes de entrar? E, finalmente, lembra como ele andou de volta para o centro do gramado, após cumprir sua missão, sem abrir um sorriso nem soltar uma bufada de alívio? Pois é. Foi assim que ele terminou de ganhar a Copa para o Brasil. As defesas do Tafarel, o comando do Dunga e a habilidade do Bebeto foram importantes, mas sem o Romário, não teríamos escutado o Galvão Bueno berrar bisonhamente enquanto aplicava uma gravata no Pelé: “É tetraaa! É tetraaa! É tetraaa!”.
Seis meses depois da Copa, Romário chegava ao Flamengo. Acabara de ser eleito o melhor jogador do mundo. Quando ele vestiu pela primeira vez o manto sagrado, as mágoas do passado viraram fumaça. Foram poucos títulos relevantes nas quatro temporadas em que defendeu o Rubro-negro, mas em compensação, fomos presenteados com o elástico sobre o Amaral, a sagacidade oportunista diante da falha do Márcio Teodoro, uma voadora no peito do gigante covarde do Vélez Sarsfield e quatro artilharias consecutivas do Campeonato Carioca. Ah, e ainda fomos à forra com os vascaínos. Perdi a conta das vezes em que vi o pigmeu mandar a torcida bigoduda calar a boca no Maracanã.
Ontem, 14 de abril de 2008, Romário anunciou o encerramento da carreira, aos 42 anos de idade. Pena que ele não chorou durante a entrevista. Eu sempre vibrei com o choro sincero do marrentinho. Dentro de campo, era um matador gelado. Mas fora dele, um coração mole e uma sinceridade transbordante.
Romário me ensinou duas coisas: a primeira, é que a humildade é facultativa diante do gênio. A marra dele sempre foi justificada pelos gols que fazia e pela coragem nas atitudes e declarações. O segundo ensinamento foi dado ao longo dos anos, mas principalmente no final da carreira, quando, já acima da casa dos quarenta, chegou ao milésimo gol e provou que, para o jogador de futebol, a inteligência é mais importante do que a forma física ou a habilidade.
Fica aqui a homenagem da Revista Foda-se ao pigmeu artilheiro. E a certeza de que jamais surgirá no futebol alguém como ele.
Zé McGill
* Aqui está o vídeo com o gol antológico de Romário pelo Barcelona:
terça-feira, 8 de abril de 2008
COMIDA CHINESA PARA OZZY OSBOURNE
Era horário de almoço no restaurante de comida chinesa em que eu trabalhava como entregador, em Berverly Hills, Los Angeles, 1998. Entediado com o movimento fraco daquela tarde, eu aguardava a próxima entrega esparramado sobre a cadeira. Estava quase caindo no sono quando o telefone tocou. A atendente anotou o pedido e colocou duas sacolas grandes sobre o balcão. No cartão que vinha grampeado em uma das sacolas, o nome do cliente: Osbourne.
Ozzy e sua família viviam em uma mansão situada a poucos quarteirões do restaurante, e eu já os havia visto freqüentando o local. Gostavam da comida refinada do Chin Chin, especialmente do Tangerine Beef, que estava entre os pratos daquele pedido. Só poderia ser ele, pensei. Levantei da cadeira e procurei pelos dois argentinos que trabalhavam comigo como entregadores. Não estavam na área. O caminho estava livre e aquela entrega seria minha. Os argentinos eram gente boa, e a vez da entrega era de um deles, mas não é todo dia que se leva comida para Ozzy Osbourne. Portanto, agarrei as duas sacolas e corri desembestado para o carro.
Girei a chave e dei a partida no motor do meu Ford Festiva vermelho – um modelo idêntico ao Fiat Uno brasileiro. No caminho até a Beverly Drive, rua onde ficava a residência dos Osbourne, senti meus pés tremerem levemente sobre os pedais do acelerador e embreagem. Eu estava tenso. Olhei para as duas sacolas gordas sentadas no banco do carona e ri sozinho, imaginando se ali dentro haveria algum prato preparado à base de morcegos. O Príncipe das Trevas havia encomendado cento e vinte dólares de comida.
Foram menos de dez minutos até a intimidadora mansão branca de Ozzy. Desliguei o motor e fiquei mirando a casa por alguns segundos, de dentro do carro. Quando saltei, com uma sacola pesada em cada mão, me senti como o sujeito da foto da capa do filme O exorcista. Entrei pelo jardim e apertei o botão da campainha. Esperei uns cinco minutos até que Jack – o filho mais velho – abrisse a porta. Cumprimentei o gordinho que, no auge de sua adolescência, parecia uma bolinha de meleca, cheio de espinhas na cara. Ele olhou para as sacolas de comida, arrancou-as das minhas mãos, e saiu gritando pela casa: “Daddy, daddy, food is here” (“Papai, papai, a comida chegou”).
Fiquei em pé ali, espiando o hall de entrada daquele palácio por alguns segundos. De repente, senti uma mão tocar o meu ombro direito. Quando me virei, ali estava Ozzy, com um regador de plantas na mão, todo vestido de preto. Ele estava cuidando do jardim, mas eu não notara sua presença quando passei por ali. “Hello. Please wait here” (“Olá. Por favor, aguarde aqui”), pediu com sotaque britânico carregado. Observei enquanto Ozzy arrastava uma das pernas até um armário no canto da sala. Abriu uma das gavetas e, sem contar, puxou um bolo de notas verdes para o pagamento da comida.
Enquanto isso, eu tentava pensar em alguma coisa legal para dizer ao homem de preto. Eu era, e ainda sou, fã do Black Sabbath – grupo que ele ajudou a formar na Inglaterra, na década de 60. Mas quando ele voltou com o dinheiro, não consegui dizer nada melhor que: “Hey Ozzy, eu sou seu fã. Eu sou do Brasil e é uma honra entregar comida para você”. A resposta do Ozzy não poderia ser melhor: “Whatever”. O whatever dele era uma forma sutil de dizer: Foda-se. Eu não estou interessado. Tchau.
Saí de lá feliz da vida. Liguei o som do carro no volume máximo e coloquei uma fita cassete com minha música favorita do Sabbath, Sweet Leaf. Antes de partir, contei o dinheiro e constatei que Ozzy havia me presenteado com oitenta dólares de gorjeta! Foi a maior gorjeta que recebi em quase um ano como entregador. E o whatever que recebi foi ainda melhor. Até que foi merecido.
Quase dez anos depois, na última quinta-feira, fui conferir o show do Ozzy na HSBC Arena (RJ), em noite chuvosa. Antes da apresentação, o telão exibiu alguns esquetes em que Ozzy aparece escrotizando filmes como A rainha e seriados como Lost. É de mijar de rir. Em seguida, as luzes se apagaram e o clima ficou por conta de Carmina Burana nos alto-falantes. Clichezão safado.
A primeira música do set list foi I Don’t Want to Stop, do recém-lançado álbum Black Rain – o primeiro em que Ozzy garante ter composto e cantado as músicas 100% sóbrio. Mas sobriedade não significa caretice para o quase sexagenário Sr. Osbourne. E o show dele é diversão garantida. Entre uma música e outra, chegava ao microfone para dizer: “Let’s go fucking crazy!!”. Não faltaram baldes d’água atirados contra a platéia, tampouco os chifrinhos vermelhos de diabo enfiados na cabeleira. Ah, ele também mostrou a bunda murcha para o público.
A noite seguiu com sucessos de sua carreira solo como Bark at the Moon e Mr. Crowley, que foram recebidos com entusiasmo pela juventude metaleira. Aliás, mais uma vez, o preço hediondo dos ingressos (pista = R$180,00) espantou muita gente. Nem mesmo os dois shows de abertura - Black Label Society e Korn – foram suficientes para assegurar a lotação máxima da casa. Já está na hora de reverem o esquema das carteirinhas de estudante, porque o feitiço virou contra o feiticeiro: os estudantes acabam pagando um valor maquiado que na verdade deveria corresponder ao preço cheio dos ingressos. E quem não é estudante paga o pato.
Mas vamos voltar ao que interessa: - pelo menos para mim, o que realmente interessava ali era escutar alguns clássicos do Black Sabbath. Então, tome War Pigs, Iron Man e Paranoid – esta última fechando o show, com direito à rodinha de porrada. Tá bom? Ainda Não? Então leva de lambuja a melhor música da carreira solo do Ozzy, No More Tears, que não fazia parte do repertório oficial da turnê. Pronto. Agora sim. Já valeu a pena.
Eu esperava uma banda afiada e um cantor com as cordas vocais comprometidas pelo tempo. Mas o que vi foi justamente o contrário. Enquanto os músicos escorregavam em seus instrumentos, Ozzy Osbourne garantia o espetáculo com os olhos esbugalhados e a inconfundível voz esganiçada em perfeitas condições. Por outro lado, o som do P.A. estava embolado e ainda tivemos todos que aturar longos minutos de um exibicionismo desnecessário do guitarrista Zakk Wilde, num solo masturbador interminável.
Isso, sem falar nas faixas que poderiam ter sido poupadas, como a balada de gosto duvidoso Mama I’m Coming Home e o hard rock farofeiro I Don’t Want to Change the World. Aí, foi a minha vez de ir à forra. Foi a minha vez de olhar de lado e dizer: Whatever, Ozzy.
Ozzy e sua família viviam em uma mansão situada a poucos quarteirões do restaurante, e eu já os havia visto freqüentando o local. Gostavam da comida refinada do Chin Chin, especialmente do Tangerine Beef, que estava entre os pratos daquele pedido. Só poderia ser ele, pensei. Levantei da cadeira e procurei pelos dois argentinos que trabalhavam comigo como entregadores. Não estavam na área. O caminho estava livre e aquela entrega seria minha. Os argentinos eram gente boa, e a vez da entrega era de um deles, mas não é todo dia que se leva comida para Ozzy Osbourne. Portanto, agarrei as duas sacolas e corri desembestado para o carro.
Girei a chave e dei a partida no motor do meu Ford Festiva vermelho – um modelo idêntico ao Fiat Uno brasileiro. No caminho até a Beverly Drive, rua onde ficava a residência dos Osbourne, senti meus pés tremerem levemente sobre os pedais do acelerador e embreagem. Eu estava tenso. Olhei para as duas sacolas gordas sentadas no banco do carona e ri sozinho, imaginando se ali dentro haveria algum prato preparado à base de morcegos. O Príncipe das Trevas havia encomendado cento e vinte dólares de comida.
Foram menos de dez minutos até a intimidadora mansão branca de Ozzy. Desliguei o motor e fiquei mirando a casa por alguns segundos, de dentro do carro. Quando saltei, com uma sacola pesada em cada mão, me senti como o sujeito da foto da capa do filme O exorcista. Entrei pelo jardim e apertei o botão da campainha. Esperei uns cinco minutos até que Jack – o filho mais velho – abrisse a porta. Cumprimentei o gordinho que, no auge de sua adolescência, parecia uma bolinha de meleca, cheio de espinhas na cara. Ele olhou para as sacolas de comida, arrancou-as das minhas mãos, e saiu gritando pela casa: “Daddy, daddy, food is here” (“Papai, papai, a comida chegou”).
Fiquei em pé ali, espiando o hall de entrada daquele palácio por alguns segundos. De repente, senti uma mão tocar o meu ombro direito. Quando me virei, ali estava Ozzy, com um regador de plantas na mão, todo vestido de preto. Ele estava cuidando do jardim, mas eu não notara sua presença quando passei por ali. “Hello. Please wait here” (“Olá. Por favor, aguarde aqui”), pediu com sotaque britânico carregado. Observei enquanto Ozzy arrastava uma das pernas até um armário no canto da sala. Abriu uma das gavetas e, sem contar, puxou um bolo de notas verdes para o pagamento da comida.
Enquanto isso, eu tentava pensar em alguma coisa legal para dizer ao homem de preto. Eu era, e ainda sou, fã do Black Sabbath – grupo que ele ajudou a formar na Inglaterra, na década de 60. Mas quando ele voltou com o dinheiro, não consegui dizer nada melhor que: “Hey Ozzy, eu sou seu fã. Eu sou do Brasil e é uma honra entregar comida para você”. A resposta do Ozzy não poderia ser melhor: “Whatever”. O whatever dele era uma forma sutil de dizer: Foda-se. Eu não estou interessado. Tchau.
Saí de lá feliz da vida. Liguei o som do carro no volume máximo e coloquei uma fita cassete com minha música favorita do Sabbath, Sweet Leaf. Antes de partir, contei o dinheiro e constatei que Ozzy havia me presenteado com oitenta dólares de gorjeta! Foi a maior gorjeta que recebi em quase um ano como entregador. E o whatever que recebi foi ainda melhor. Até que foi merecido.
Quase dez anos depois, na última quinta-feira, fui conferir o show do Ozzy na HSBC Arena (RJ), em noite chuvosa. Antes da apresentação, o telão exibiu alguns esquetes em que Ozzy aparece escrotizando filmes como A rainha e seriados como Lost. É de mijar de rir. Em seguida, as luzes se apagaram e o clima ficou por conta de Carmina Burana nos alto-falantes. Clichezão safado.
A primeira música do set list foi I Don’t Want to Stop, do recém-lançado álbum Black Rain – o primeiro em que Ozzy garante ter composto e cantado as músicas 100% sóbrio. Mas sobriedade não significa caretice para o quase sexagenário Sr. Osbourne. E o show dele é diversão garantida. Entre uma música e outra, chegava ao microfone para dizer: “Let’s go fucking crazy!!”. Não faltaram baldes d’água atirados contra a platéia, tampouco os chifrinhos vermelhos de diabo enfiados na cabeleira. Ah, ele também mostrou a bunda murcha para o público.
A noite seguiu com sucessos de sua carreira solo como Bark at the Moon e Mr. Crowley, que foram recebidos com entusiasmo pela juventude metaleira. Aliás, mais uma vez, o preço hediondo dos ingressos (pista = R$180,00) espantou muita gente. Nem mesmo os dois shows de abertura - Black Label Society e Korn – foram suficientes para assegurar a lotação máxima da casa. Já está na hora de reverem o esquema das carteirinhas de estudante, porque o feitiço virou contra o feiticeiro: os estudantes acabam pagando um valor maquiado que na verdade deveria corresponder ao preço cheio dos ingressos. E quem não é estudante paga o pato.
Mas vamos voltar ao que interessa: - pelo menos para mim, o que realmente interessava ali era escutar alguns clássicos do Black Sabbath. Então, tome War Pigs, Iron Man e Paranoid – esta última fechando o show, com direito à rodinha de porrada. Tá bom? Ainda Não? Então leva de lambuja a melhor música da carreira solo do Ozzy, No More Tears, que não fazia parte do repertório oficial da turnê. Pronto. Agora sim. Já valeu a pena.
Eu esperava uma banda afiada e um cantor com as cordas vocais comprometidas pelo tempo. Mas o que vi foi justamente o contrário. Enquanto os músicos escorregavam em seus instrumentos, Ozzy Osbourne garantia o espetáculo com os olhos esbugalhados e a inconfundível voz esganiçada em perfeitas condições. Por outro lado, o som do P.A. estava embolado e ainda tivemos todos que aturar longos minutos de um exibicionismo desnecessário do guitarrista Zakk Wilde, num solo masturbador interminável.
Isso, sem falar nas faixas que poderiam ter sido poupadas, como a balada de gosto duvidoso Mama I’m Coming Home e o hard rock farofeiro I Don’t Want to Change the World. Aí, foi a minha vez de ir à forra. Foi a minha vez de olhar de lado e dizer: Whatever, Ozzy.
Zé McGill
*Ozzy escrotizando no Youtube:
**Este texto foi publicado na revista Rock Press (06/04/2008): http://www.rockpress.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=2478
quarta-feira, 2 de abril de 2008
MEDO DE MAR
Pedi demissão. Trabalhava há pouco mais de um ano em uma gravadora multinacional e trilhava o caminho para me tornar um executivo do mercado fonográfico. Cansei. Agora percorro os trilhos da vagabundagem e posso me considerar um desempregado feliz. Meu futuro não será mais planejado em longo prazo. Amanhã, não sei como será. Tudo pode piorar, tudo pode melhorar. Estou na pista. Ou melhor, na areia da praia.
Vagabundo disciplinado, acordei às oito horas da manhã de ontem. Combinamos, eu e dois amigos, uma pequena viagem até a melhor praia do Rio de Janeiro, a Prainha – uma das poucas da cidade onde a areia não fede a chulé e não se encontra camisinha usada nem tampa de privada boiando na água. Há anos não experimentava o prazer de uma praia vazia em plena terça-feira. Como é boa essa vida de vagabundo!
No paraíso da Prainha, a água do mar é verde e clara como uma limonada. Não fosse a maré bravia, teria ficado boiando por horas de barriga pra cima feito um leão marinho preguiçoso no esquema “você deságua em mim e eu oceano”, bem cafajeste mesmo. Armamos a barraca para aliviar o calor do sol e sentamos nas cadeiras de praia. Desce uma cerveja, sobe um baseado. Que belezura. Ficamos sentados ali observando um maluco que se aventurava nas ondas de dois metros, equipado apenas com pés de pato.
Comentávamos a respeito da impavidez daquele sujeito quando lembrei de um episódio traumatizante vivido naquele mesmo mar, muitos anos atrás. Eu era adolescente e feliz proprietário de uma morey boogie, mas já me considerava um intrépido bodyboarder. E foi ali, na mesma Prainha, que cai na água e parti destemido pra cima da arrebentação. Furei as primeiras ondas e nem havia respirado direito quando dei de cara com uma morra colossal, a última onda da série. Tomei na cabeça. Passei alguns segundos liquidificando no fundo, batendo as costas na areia e engolindo um punhado de água e sal.
Voltei à superfície abrindo a boca para sugar o máximo possível de oxigênio para dentro dos pulmões, emitindo um urro desconcertante. Trepei na prancha e colei a testa em cima dela para retomar a consciência. Comecei então a sentir uma fisgada violenta na coxa direita: câimbra. A dor aguda impossibilitava qualquer movimento e por isso me distanciei da arrebentação. Um surfista adulto que remava por ali, notou o meu aperto e perguntou: “Ô muleque, tudo bem aí? Quer um empurrãozinho?”. Nem pensar! Imagina se eu, bodyboarder arrojado que era, toparia descer uma onda empurrado. “Não, não. Tá tranquilo. Tô só esperando a próxima série”, respondi. Que palhaço.
Meu orgulho seria tragado pelo oceano dez minutos depois, quando, ainda imóvel sobre a prancha, olhei para a direita e notei que uma enorme medusa boiava a poucos centímetros de minha perna paralisada. A medusa é um invertebrado aquático de corpo gelatinoso, em forma de guarda-sol. Uma água viva gigante, com tentáculos venenosos. A visão era aterrorizante. Mijei na sunga. E fiquei torcendo para que aquele monstro se afastasse dali. Mas aí me ocorreu que o odor da urina atrai tubarões e eu já estava bem afastado da praia, flutuando isolado. Presa fácil.
Sempre tive verdadeiro cagaço de tubarão. Acho que vi filmes demais quando era pequeno. A paranóia era tanta que eu chegava ao ridículo de nadar rápido dentro da piscina, com medo de ser abocanhado pela besta imaginária. Quando pulava pra fora da piscina, ofegante sobre a borda, e me perguntavam o que estava acontecendo, eu dizia que estava apostando corrida. Hoje, me recuso a mergulhar em alto-mar. Especialmente com óculos de mergulho que possibilitam enxergar ao longe. Imagino logo um cardume de tubarões se aproximando. Sei que o fundo do mar é maravilhoso, um outro mundo, com estrelinhas brilhantes, cavalos-marinhos minúsculos e conchinhas muito meigas, porém, não, obrigado. Tô fora.
Mas voltando àquela tarde adolescente na Prainha, o episódio da medusa e a paranóia do mijo me fizeram pedir arrego. Quando avistei aquele surfista novamente, deixei a vergonha de lado e pedi socorro. O cara era gente fina e foi solícito. Desceu da prancha e me empurrou na primeira onda que passou. Quando cheguei à beira, a perna ainda doía, e eu mal conseguia ficar em pé. As marolas varriam minhas canelas, a presilha enrolou-se nos meus pés e eu caí de cara na areia. Chegada triunfal. Uma dupla de jogadores de frescobol presenciou tudo. E não conseguiram conter o riso. Humilhado, tentei me levantar enquanto tropeçava nos pés de pato.
A sensação de derrota deu um ponto final prematuro à minha carreira de surfista. Mas o medo de mar persiste. E não apenas pelas feras que habitam o oceano. O simples fato de não enxergar o que está abaixo da superfície me incomoda profundamente. Mas hoje, pelo menos consigo nadar tranqüilo pelas piscinas do mundo.
Vagabundo disciplinado, acordei às oito horas da manhã de ontem. Combinamos, eu e dois amigos, uma pequena viagem até a melhor praia do Rio de Janeiro, a Prainha – uma das poucas da cidade onde a areia não fede a chulé e não se encontra camisinha usada nem tampa de privada boiando na água. Há anos não experimentava o prazer de uma praia vazia em plena terça-feira. Como é boa essa vida de vagabundo!
No paraíso da Prainha, a água do mar é verde e clara como uma limonada. Não fosse a maré bravia, teria ficado boiando por horas de barriga pra cima feito um leão marinho preguiçoso no esquema “você deságua em mim e eu oceano”, bem cafajeste mesmo. Armamos a barraca para aliviar o calor do sol e sentamos nas cadeiras de praia. Desce uma cerveja, sobe um baseado. Que belezura. Ficamos sentados ali observando um maluco que se aventurava nas ondas de dois metros, equipado apenas com pés de pato.
Comentávamos a respeito da impavidez daquele sujeito quando lembrei de um episódio traumatizante vivido naquele mesmo mar, muitos anos atrás. Eu era adolescente e feliz proprietário de uma morey boogie, mas já me considerava um intrépido bodyboarder. E foi ali, na mesma Prainha, que cai na água e parti destemido pra cima da arrebentação. Furei as primeiras ondas e nem havia respirado direito quando dei de cara com uma morra colossal, a última onda da série. Tomei na cabeça. Passei alguns segundos liquidificando no fundo, batendo as costas na areia e engolindo um punhado de água e sal.
Voltei à superfície abrindo a boca para sugar o máximo possível de oxigênio para dentro dos pulmões, emitindo um urro desconcertante. Trepei na prancha e colei a testa em cima dela para retomar a consciência. Comecei então a sentir uma fisgada violenta na coxa direita: câimbra. A dor aguda impossibilitava qualquer movimento e por isso me distanciei da arrebentação. Um surfista adulto que remava por ali, notou o meu aperto e perguntou: “Ô muleque, tudo bem aí? Quer um empurrãozinho?”. Nem pensar! Imagina se eu, bodyboarder arrojado que era, toparia descer uma onda empurrado. “Não, não. Tá tranquilo. Tô só esperando a próxima série”, respondi. Que palhaço.
Meu orgulho seria tragado pelo oceano dez minutos depois, quando, ainda imóvel sobre a prancha, olhei para a direita e notei que uma enorme medusa boiava a poucos centímetros de minha perna paralisada. A medusa é um invertebrado aquático de corpo gelatinoso, em forma de guarda-sol. Uma água viva gigante, com tentáculos venenosos. A visão era aterrorizante. Mijei na sunga. E fiquei torcendo para que aquele monstro se afastasse dali. Mas aí me ocorreu que o odor da urina atrai tubarões e eu já estava bem afastado da praia, flutuando isolado. Presa fácil.
Sempre tive verdadeiro cagaço de tubarão. Acho que vi filmes demais quando era pequeno. A paranóia era tanta que eu chegava ao ridículo de nadar rápido dentro da piscina, com medo de ser abocanhado pela besta imaginária. Quando pulava pra fora da piscina, ofegante sobre a borda, e me perguntavam o que estava acontecendo, eu dizia que estava apostando corrida. Hoje, me recuso a mergulhar em alto-mar. Especialmente com óculos de mergulho que possibilitam enxergar ao longe. Imagino logo um cardume de tubarões se aproximando. Sei que o fundo do mar é maravilhoso, um outro mundo, com estrelinhas brilhantes, cavalos-marinhos minúsculos e conchinhas muito meigas, porém, não, obrigado. Tô fora.
Mas voltando àquela tarde adolescente na Prainha, o episódio da medusa e a paranóia do mijo me fizeram pedir arrego. Quando avistei aquele surfista novamente, deixei a vergonha de lado e pedi socorro. O cara era gente fina e foi solícito. Desceu da prancha e me empurrou na primeira onda que passou. Quando cheguei à beira, a perna ainda doía, e eu mal conseguia ficar em pé. As marolas varriam minhas canelas, a presilha enrolou-se nos meus pés e eu caí de cara na areia. Chegada triunfal. Uma dupla de jogadores de frescobol presenciou tudo. E não conseguiram conter o riso. Humilhado, tentei me levantar enquanto tropeçava nos pés de pato.
A sensação de derrota deu um ponto final prematuro à minha carreira de surfista. Mas o medo de mar persiste. E não apenas pelas feras que habitam o oceano. O simples fato de não enxergar o que está abaixo da superfície me incomoda profundamente. Mas hoje, pelo menos consigo nadar tranqüilo pelas piscinas do mundo.
Zé McGill
Assinar:
Postagens (Atom)