sexta-feira, 25 de julho de 2008

JANELA INDISCRETA


Suspense. Nos últimos anos, o Campeonato Brasileiro de Futebol devolveu ao público, aos jogadores e a todos os envolvidos com o esporte bretão o velho complexo de vira-latas. E o medo. Se o tal complexo percebido por Nelson Rodrigues havia sido enterrado após a conquista da Copa de 1958, ele acaba de ser exumado, cinquenta anos depois. Ou não seria um campeonato de vira-latas aquele em que o maior medo do torcedor é perder o craque do seu time para a janela indiscreta de negociações com o futebol europeu? Aliás, futebol europeu, asiático, adriático, polar, aborígene, talibã...

Me lembro bem – e com pesar – da noite em que o Vasco tirou o Bebeto do Flamengo. Corria o ano de 1989 e eu era um moleque esquelético e orelhudo que começava a acompanhar atentamente o dia-a-dia do meu time. Talvez tenha sido meu período mais doentio como torcedor, ali pelos doze anos de idade. Passava as noites escutando o programa Panorama Esportivo, da Rádio Globo, das dez à meia-noite.

Ao final de uma das edições do Panorama, já perto da madrugada, chegou a notícia fulminante, na voz enfática do Élcio Venâncio: “O Vasco anuncia a contratação de Bebeto!”. Sempre que me lembro de alguma notícia trágica sobre futebol, lá está a figura caxias de Élcio Venâncio. E ele anunciou a venda do Bebeto como um repórter policial anuncia um assassinato de figurão em terreno baldio. Esse era sempre o tom dele. Onde andará Élcio Venâncio?

Mas, voltando à tragédia do Bebeto, dormi mal naquela noite. A notícia doeu nas entranhas. E no dia seguinte, quando cheguei no colégio, os amigos vascaínos infernizaram meus ouvidos com a comemoração ovante. O Bebeto era chorão, acreditava em Papai Noel e no Saci Pererê, mas era craque. E a venda dele para o maior rival do Flamengo foi o meu primeiro trauma em termos de perda de ídolos.

Mas a diferença daquela negociação – e de tantas outras que ganharam manchetes até o final do século passado – para as negociações de hoje, era que o negócio só se concretizava depois que o jogador estivesse estabelecido como ídolo de uma torcida. O Zico, por exemplo, só foi vendido para a Udinese depois de disputar duas Copas do Mundo, já beirando os trinta anos de idade. Hoje, é bem diferente. Qualquer Marcinho arruma as malas antes mesmo da metade da competição se for o artilheiro do campeonato. E não precisa ser artilheiro de nada, não. Se você for o zagueiro reserva do reserva do Flamengo e tiver um bom empresário, pode ir parar no Belenenses, de Portugal.

Agora, quem se lembra do Bujica, aquele centroavante rubro-negro que gostava de balançar as redes vascaínas na década de 80? Foi vendido pro estrangeiro? Nunca. Mas se jogasse hoje, teria boas chances de ir parar na Ucrânia. E o Berg, do Botafogo? Hoje, seria o camisa dez do Galatassaray, da Turquia. Fácil. O Biro-Biro não teria tido tempo de se tornar ídolo da Gaviões da Fiel. Na primeira roubada de bola em jogo contra o XV de Piracicaba, seria levado para as Arábias. Aliás, a famosa democracia corinthiana não teria existido. Hoje, só há lugar para a ditadura do dinheiro. Na vida e no futebol.

Acabo de ler no jornal que um tal de Philippe Coutinho, do Vasco, foi vendido para a Inter de Milão. Tem dezesseis anos, o moleque. Ainda fede a talquinho de neném e deve frequentar festinhas de playground, onde se empanturra com delícias juvenis como o cajuzinho. E o pior: os paneleiros lusitanos ainda nem tiveram a chance de ver o garoto jogar. Não vai doer nada no coração do torcedor. E aí é que está a tragédia: ninguém vai sofrer com a perda do eventual craque de bola. Ninguém vai chorar. Ninguém chora mais pela perda do ídolo. Mas hão de lembrar do mancebo cruzmaltino quando este despontar como revelação tupiniquim pelos gramados do velho continente.

Pergunto, então: - Como torcer por um time brasileiro de futebol em 2008? Como torcer pelo Fluminense sabendo que os dois Thiagos vão embora antes do fim do campeonato? Como torcer pelo Flamengo se o único que admite ficar até o fim é o técnico Harry Potter? Como torcer pelo Grêmio se o craque (?) do time, Roger, decide, da noite para o dia, que vai jogar no Qatar (!), e vai embora sem se despedir dos companheiros? Como torcer diante do desdém e da falta de credibilidade? Como torcer com medo de que o melhor jogador do seu time resolva abrir a janela de transferências e saltar para o abismo da prosperidade? Como torcer nesse clima de suspense e medo à la Alfred Hitchcock?

O melhor negócio é virar voyeur, feito o personagem do James Stewart (o ator do filme Janela indiscreta). Faça como ele. Arrume uma perna quebrada, coloque nela um gesso pesado, sente na poltrona e espreite o seu time pela televisão com muita suspeita e desconfiança porque amanhã ele pode ser vítima de mais um assassinato a que você espreita pela janela. A indiscreta, a medonha, a hedionda janela de transferências.

Zé McGill

sábado, 12 de julho de 2008

A Z E I T O N A


Foda-se o Centro da Cidade do Rio de Janeiro e o seu caos de formigueiro quente, cinza, feio, fétido. Fodam-se a Avenida Rio Branco e a Presidente Vargas. Fodam-se a Cinelândia, o Amarelinho e o glamour do Theatro Municipal. Foda-se a Confeitaria Colombo e toda sua tradição em quitutes. Fodam-se os tribunais, fóruns e escritórios; adevogados, homens-de-negócio e despachantes. Fodam-se o terno e a gravata. Foda-se a Igreja da Candelária. E foda-se também a Academia Brasileira de Letras, que não reconhece a expressão “foda-se” como a melhor e mais transcendental da língua portuguesa.

Se o Robert De Niro ainda fosse o Taxi Driver e vivesse no Rio de Janeiro, diria isso tudo que está escrito aí em cima sobre o Centro. E mais um pouco. Diria que o Centro é a escória da Terra.

O Centro do Rio, praticamente, é um cemitério. Os prédios são a lápide da sepultura de muita gente. Uns morrem aos pouquinhos na Rua da Assembléia número dez, outros padecem macambúzios no Edifício Avenida Central. Os patrões são os coveiros e o computador é a cruz que acompanha os escaveirados das nove da manhã às cinco da tarde. Flores, só para os futuros presuntos que trabalhem num escritório cheio de estagiárias gostosas.

Toda vez que caminho pelas ruas do Centro, sinto meus ossos apodrecerem, meus cabelos embranquecerem. Trabalhei ali algumas vezes e... nunca mais. Outro dia fui obrigado a voltar ao Centro após alguns bons meses de ausência. Sim, para resolver problemas de ordem estritamente burocrática, como de praxe. Hoje, só piso lá quando sou obrigado. Ou quando é para comprar contrabando no camelódromo da Uruguaiana. Atenção. Observação: Já escrevi a palavra "centro" em demasia neste texto. Por isso, no próximo parágrafo, centro será azeitona.

Toda cidade tem suas esquisitices. Em Londres, uma das atrações turísticas de maior sucesso é a trilha dos assassinatos cometidos por Jack, o Estripador. Com direito a um guia tradutor e tudo, pelas ruas de Whitechapel. Em Marraqueche, na praça Jemaa el-Fna (a maior praça do continente africano), os caras brincam de provocar a Naja, a serpente mais peçonhenta do mundo, tocando clarinete e metendo um pandeiro na cara do animal. Em Los Angeles, existe um vale chamado São Fernando, que fica a meia hora da azeitona, e é conhecido pela simpática alcunha de “Cidade do Pecado”. É a Hollywood do cinema pornô. A capital mundial da sacanagem!

Alguém dirá que a maior esquisitice da Cidade Maravilhosa (cheia de cantos mil) é o Estádio de São Januário, na Barreira do Vasco. Mas não. No quesito esquisitice, o campo dos paneleiros bigodudos é... vice-campeão. O título de maior bizarrice carioca vai para o Centro da Cidade.

Aliás, todo centro de cidade grande é desagradável, mas o que potencializa a escrotidão do Centro do Rio é a beleza natural que está a seu redor. Sinceramente, não entendo como é que alguém consegue encher a boca pra dizer: "Eu adoro o Centro. Adoro tomar um chope no Centro depois do trabalho". Pra mim, quem diz isso é hiena: come merda e ri.

Zé McGill

terça-feira, 1 de julho de 2008

O SHOW DO ANO

The Skatalites, a melhor banda de ska do mundo, passou pelo Brasil recentemente e não tocou no Rio. Teve gente se lamentando e gente matando o trabalho e a faculdade para ir até São Paulo ou Brasília conferir o show dos jamaicanos. Eu fiquei. Lamentei, reclamei, proferi adjetivos não muito carinhosos aos responsáveis pela turnê dos caras e depois esqueci. Só que aí disseram que o New York Ska Jazz Ensemble, a segunda melhor banda de ska do mundo, tocaria na cidade. Taí então o consolo, pensei. Consolo... porra nenhuma. Foi o show do ano!

A gente percebe logo que um show merece atenção quando os caras que pisam no palco já passaram da casa dos quarenta anos de idade. Se os caras misturam ska com jazz, rock e reggae e são de Nova Iorque... aí então dá pra desconfiar que o bagulho vai ser realmente quente. E foi. O Teatro Odisséia, local que abrigou o bacanal ska-jazzístico, estava lotado. Raramente se vê uma fila daquele tamanho na porta da casa de shows carioca.

“Rocksteady” Freddie Reiter (saxofone, flauta, vocal) é o coroa meio-careca-meio-grisalho que comanda a banda com um jogo de pernas malemolente e sapatos bicolores. Ele é o único remanescente da formação original do NYSJE. E é ele quem anuncia em inglês: “Nós somos o New York Ska Jazz Ensemble. Rio, vocês estão prontos?”. Começava ali um show que, para mim, ainda não acabou. Estão rolando até agora, aqui dentro da caixola craniana, os ecos do saxofone do “Rocksteady” e do trombone do Mark Pakin – o sósia parrudo do Tom Waits.

O setlist passeou pela carreira da banda e privilegiou seus três primeiros – e melhores - álbuns: New York Ska Jazz Ensemble (1995), Low Blow (1997) e Get This (1998). Nos discos, o NYSJE costuma escolher alguns clássicos do jazz e transformá-los, apimentando a coisa com tempero jamaicano. Quem foi ao Teatro Odisséia viu o que eles fazem com standards como Mood Indigo (Bigard/Ellington/Mills), Harlem Nocturne (Earle Hagen) e Haitian Fight Song (Charles Mingus). Esta última, alías, foi um dos momentos delirantes da noite. A música, que no original de Mingus já soa como um tributo à cocaína tamanha a aceleração dos compassos, com o NYSJE ganha ainda mais cor e energia. Bob Marley & The Wailers também foram homenageados, com uma versão mais cadenciada de Love and Affection, faixa dos primórdios do grupo de Kingston.

Mas o New York Ska Jazz Ensemble não vive só de releituras. O repertório autoral da banda é matador e o público carioca foi presenteado com Joelle, Low Blow, Midnite Crazier e Montalvo, entre outras. De quebra, foram apresentadas algumas faixas do disco novo, Step Forward, que ainda nem foi lançado oficialmente. E, claro, como acontece em 90% dos shows gringos no Rio de Janeiro, teve que rolar um jabazinho maroto: solo de Desafinado (Tom Jobim) no saxofone.

No palco, além do “Rocksteady” e do sósia parrudo do Tom Waits, estavam Yao Dinizulu (bateria), Earl Appleton (teclados), Alfred Wayne Batchelor (baixo) e Alberto Tarin (guitarra). Este último, se empolgava cada vez que “Rocksteady” anunciava: “Na guitarra, Alberto Tarin, de Valencia, Espanha”. E, na empolgação, o Alberto mandou uns solos que às vezes destoavam do clima. Chegou até a citar o solo de Oye Como Va, do Santana, no meio de uma música.

“Caralho! Eu esperei dez anos por esse show!”, foram as palavras que soltou B Negão ao pisar visivelmente emocionado no palco do Teatro Odisséia para participar do bizz mandando rap freestyle em cima da inacreditável Buttah. Entre uma e outra frase dos metais, “Rocksteady” dava um tapinha nas costas e fazia sinal com a cabeça pra que o Negão entrasse na roda. Ninguém conseguiu ficar parado. Sabe aquele lance de por alguns minutos voltar a ser criança? Sabe como é passar um show inteiro com um sorriso debilóide colado na cara, com os dentes à mostra? Pois é. Tipo isso.


Cheguei em casa com o tênis todo pisado e a camisa ensopada de suor. Liguei o som e acordei uma vizinha velha com a música do NYSJE. Até agora, em 2008, passaram pelo Rio de Janeiro os shows de Ozzy Osbourne, Rod Stewart e até Bob Dylan. Mas, por enquanto, o show de domingo do New York Ska Jazz Ensemble no Teatro Odisséia leva o meu troféu de show do ano. Foi daqueles que entram pra lista dos melhores shows da vida de alguém.

Zé McGill


* Aqui estão os links para dois vídeos do show do NYSJE no Teatro Odisséia:
http://youtube.com/watch?v=d52E8udnG2o
http://www.youtube.com/watch?v=VGnqcG7eK2k

** Esta resenha foi publicada no Portal Rock Press:
(
http://www.portalrockpress.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=2719)

*** Foto – Michael Meneses