sábado, 22 de novembro de 2008

JOÃO JOÃO E O FORASTEIRO


João João era um bandido que metia medo em todo mundo. A barba precisamente aparada, o terno marrom sempre alisado com ferro quente e aquele cabelo negro brilhante que nunca escorria eram as bandeiras do temperamento gelado que carregava. Ninguém sabia o motivo da cicatriz que dividia sua cara redonda em dois hemisférios: no sudoeste, a boca amordaçada pelo corte. No nordeste, olhos infinitos.

Estava faminto quando adentrou a taberna naquela noite fria. Colocou o revólver sobre o balcão, tirou o terno e pediu um ovo estrelado com duas fatias de bacon. Sentou-se e abriu bem as narinas para aspirar o cheiro quente de sua refeição, que já flutuava pelo salão. O rádio de pilha tocava um blues dos anos 1930 que falava sobre o encontro de alguém com o diabo numa encruzilhada.

Sentado ao seu lado, um forasteiro franzino engolia calmamente a cerveja morna que descia da caneca de vidro. Tinha um olho cego embaçado, o outro no revólver de João João, que dormia sobre o balcão. Acabara de chegar na cidade e estava à procura do assassino de seu irmão. Agora que o encontrara, sentado logo ao lado com aquela cicatriz indefectível, refazia seu plano de vingança.

O forasteiro ouvira dizer que o ponto fraco de João João residia justamente nos deboches que seu nome composto inspirava, mesmo que ninguém na cidade tivesse coragem de proferir os tais deboches na sua presença. Portanto, foi por este caminho que o forasteiro iniciou o ataque quando o ovo estrelado e os bacons pousaram no colo de seu adversário.

“Boa noite, estranho, qual é a sua graça?”
“E quem é que deseja saber?”, retrucou João João, salgando o ovo sem olhar para o forasteiro.
“Ora, vamos, meu caro. Só estou tentando puxar conversa nesta noite vazia. Você pode me chamar de Zezé”.
João João largou os talheres de metal sobre o prato e finalmente o encarou.
“Me chamo João João”, respondeu, com o bacon entre os dentes.
“Pfff... João João!”, exclamou o forasteiro explodindo numa gargalhada maliciosa e esguichando cerveja por entre os lábios semi-cerrados antes de concluir: “Que raio de nome é esse!?”

Os outros clientes da taberna, que até então acompanhavam o diálogo entre João João e o forasteiro de olhos arregalados, encolheram-se em seus cantos, provocando um súbito silêncio, apesar do som do rádio e da gargalhada escandalosa que ecoava pelo salão.

Agora de pé, João João passou a mão no revólver e apontou na direção do forasteiro. Sua alma embriagada de cólera desfizera as manias mais excêntricas de sua frieza e uma mecha do cabelo negro e brilhante agora pendia patética sobre a testa em brasa.

“É nome de sujeito homem”, trovejou João João. “Nome de matador, seu filho de uma puta. E tira esse sorriso da cara senão eu te meto chumbo agora mesmo!”

O forasteiro descansou a caneca de vidro sobre o balcão e limpou o sorriso com a manga da camisa. Foi ali que o dono da taberna, um tipo obeso e de bigode ruivo, apresentou Marieta, a escopeta que ficava escondida do outro lado do balcão. Não precisou dizer nada. Bastou apontar, com o cano da arma, o caminho da rua.

Lá fora, o vento corria rasteiro, sujando de poeira o couro das botas de João João. A estrada de terra que passava na frente da taberna dormia deserta no mais negro breu. A única testemunha do duelo que se anunciava era a luz fraca da lamparina de querosene, que dançava preguiçosa na porta da taberna. Nenhum dos clientes teve peito de meter a cara na janela.

João João, que saíra primeiro, empunhava o revólver com raiva. Tanta raiva, que o suor da palma de sua mão tornara escorregadia a coronha do revólver. Seus olhos procuravam a silhueta do forasteiro no meio da escuridão, mas o que avistaram foi a caneca de vidro rolando na direção das botas sujas e derramando o resto de cerveja morna sobre a areia. Nenhum sinal do forasteiro, até que sentiu a garganta sendo esmagada por um braço e a barriga espetada pela ponta de um facão. O revólver de João João quicou pela estrada.

“Vou fazer um X na tua cara, completar o serviço que meu irmão começou”, disse o forasteiro, soltando um bafo quente na parte posterior da orelha de João João.
“Mate-me agora, ou morra depois, seu pedaço de merda”, grunhiu João João.
“Não... prefiro te deixar caminhar por aí, com um X na cara, pra completar a desgraça que esse teu nome ridículo já te traz. João João... pfff. Que nome escroto.”

O facão viajou fundo, do noroeste ao sudeste da face de João João. Deitado em frente à taberna, com o rosto coberto de sangue, ele escutou as gargalhadas e os gritos cada vez mais distantes do forasteiro, que sumiu para sempre no breu da estrada: “João João! Teu nome é tua sepultura! Tua sepultura, João João!”

Zé McGill

*Trilha sonora para leitura: Me and the devil blues, de Robert Johnson.
Aqui o link pro vídeo, que é bem sinistro - http://www.youtube.com/watch?v=3MCHI23FTP8



quarta-feira, 5 de novembro de 2008

ALESSANDRA NEGRINI NUNCA ME LIGOU


Lá estava eu comandando as carrapetas no meu primeiro trabalho como DJ em uma festa particular. Passava das onze da noite e a pista de sinteco da sala começava a fumegar naquele apartamento ancião da praia do Flamengo. Entre uns goles na latinha de cerveja e umas espiadas na vista panorâmica da Baía de Guanabara, revezávamos, eu e meu parceiro Lupicínio, no temporal de Funk 70 que desabava em forma de James Brown, Kool & The Gang, Sly, Tim Maia e JB’s, entre outros meliantes da pesada, quando uma perua precoce e ocluda me abordou.

“Toca um funk aí!”
“Hã?”, respondi, fingindo que o volume do som atrapalhava a compreensão daquele pedido lunático.
“Fuuun-kêêê!”, escancarou a ocluda. Pronto. Agora não tinha mais desculpa.
“Pô... mas isso é James Brown. Quer mais funky que isso?”, tentando ser simpático: a ocluda tinha uma bunda legal.
“Eu sei, muito bom! Mas toca aí um funk original.”
“Original, como assim!?”
Afinal, entendi. O “funk original” dela era o pancadão-popozudo-tigrão-carioca.
“Foi mal, não tenho”, aleguei, tentando fornecer um sorriso amarelado.
A ocluda fez beicinho mas sorriu e saiu saltitando pelo sinteco feito uma gazela suntuosa enquanto ajeitava os óculos.

Tudo bem, até acho que o pancadão, ou funkarioca, tem o seu valor, que é uma forma legítima e até divertida de expressão dos esquecidos do esquemão e etc., mas porra, os meliantes do funk norte-americano dos anos 70 é que são os originais, os pais do funk. E quando a ocluda me abordou, o som que rodava no CDJ era Make it funky, do James Brown: uma pedrada violenta, daquelas que fazem até joão-bobo murcho balançar.

Entre uns goles na latinha de cerveja e umas espiadas na bunda da ocluda, lembrei que a festa acontecia em um dos metros quadrados mais caros da cidade, e que os convidados eram daquele time que acha que é cool militar a favor da cultura dos morros sem nunca ter pisado numa favela. De qualquer maneira, o aniversariante (vulgo: patrão) e a maioria dos convidados estavam perdendo a noção do ridículo na pista, bamboleando de tal maneira que não deixavam dúvida quanto ao sucesso da sequência musical a que eu e Lupicínio os submetíamos.

Já perto da meia-noite, entre uns goles na latinha de cerveja e umas espiadas na mesa de quitutes, o Lupicínio acertou uma leve cotovelada nas minhas costelas e forneceu a notícia aterrorizante:

“Olha quem chegou aí... a tua musa, Alessandra Negrini”.
“Tá de sacanagem... cadê?”, perguntei no susto.
“Ali, malandro!”, apontando para a porta do apartamento.
“Aí, fodeu, não vou mais conseguir tocar.”, avisei, meio rindo, meio sério.

Lupicínio conhecia a minha tara pela atriz Global. Estava farto de me ouvir dizer, no final dos nossos porres pelos botecos sujos, que Alessandra Negrini era a mulher mais tesuda da galáxia. Sim, encabeçando uma lista que conta ainda com as seguintes alienígenas: Catherine Boceta-Jones (aquela égua galesa), Kirsty Alley (a mamãe-delícia do filmeco Três solteirões e um bebê), Mireya Luis (a ex-craque popozuda da seleção cubana de vôlei) e Cláudia Cruz (a apresentadora do RJTV nos anos 90, que fazia um biquinho fatal com a boca enquanto apresentava as notícias de inutilidade pública do telejornal).

Sabedor da minha aflição, Lupicínio não estranhou quando larguei o headphone no meio de Acenda o farol, do Tim Maia, e fui fumar um cigarro na janela. Alessandra já havia sumido na pequena multidão que se formara no corredor colossal que desembocava na “pista”, mas a ciência de sua presença no recinto festivo me perturbava. Entre uns goles na latinha de cerveja e uns tragos no cigarro, fiquei lembrando das fotos da Playboy, em que ela aparece com o olhar mais safado do mundo, posando de prostituta na Lapa. É a melhor Playboy nacional de todos os tempos.

Encostado no parapeito, de costas pra janela, senti a brisa soprar na minha nuca quando Alessandra surgiu na pista. Trajava um vestido preto de tecido leve que denunciava todos os seus volumes mas deixava nuas apenas as canelas brancas e grossas. Segurando uma taça de champagne com uma das mãos e ajeitando o cabelo recém-cortado com a outra, ela entrou na dança timidamente, apesar do esforço dos estranhos em transparecer a maior naturalidade na sua presença. Acho que foi a suposta timidez dela que me encorajou a voltar pra mesa de som.

Entre uns goles na latinha de cerveja e umas espiadas no popô da Alessandra - que já requebrava bonito na minha frente - relaxei. Passava das duas horas da madrugada quando a vi caminhando em direção à mesa de som, quer dizer, em minha direção. O sorrisinho dela era bem diferente daquele da Playboy. Era um sorriso meio torto, meio encabulado e, ao mesmo tempo, maroto que só ele. Os dois olhões negros me encontraram com cara de panaca, a boca entreaberta. Notei que ela trazia um pequeno pedaço de papel e uma caneta, ambos na mesma mão. Na outra, ainda a taça de champagne. Tirei o headphone da cabeça, enchi o peito de confiança e me preparei para o confronto.

“Oi. Tudo bem?”, ela - colocando a taça sobre a mesa.
“Tudo!”, eu - vermelho, roxo, magenta, sei lá, sou daltônico.
“Adorei o som de vocês. Várias músicas que eu não escutava há um tempão. Vocês tocam sempre juntos? É que eu vou precisar de um DJ pruma festa e queria pegar o telefone de vocês...”.

Olhei de relance pro Lupicínio, com cara de quem pede socorro, mas o puto fingiu estar compenetrado no trabalho, nem tirou o olho do CDJ. Aposto que estava se mijando de rir. Depois ele confessou que ouviu a conversa toda. Mas agora era comigo. A maior tesuda da galáxia estava na minha frente, pedindo o meu telefone e eu queria lhe dizer algo além do meu número. Ela é o tipo de mulher que já escutou toda a sorte de gracinhas e cantadas imbecis, portanto, perguntar se ela gostaria de conhecer a minha coleção de selos estava fora de cogitação. Resolvi então libertar o canalha que mora dentro de todos nós:

“Olha, Alessandra, seria o maior prazer tocar pra você, mas quando é a festinha?”
“É no dia 31 de outubro, sexta-feira. Você pode?” – respondeu, ainda sorrindo torto, mas na maior boa vontade. Percebi que desta vez ela perguntara se eu poderia, e não se nós poderíamos.
“Hummm... dia 31. É o dia do Halloween, né?”
“É mesmo! Coincidência...”
“Pois é, acho que não vou poder, minha mãe não me deixa sair de casa no Halloween...”
“Que história é essa menino, quantos anos você tem?”, o sorriso dela agora era mais espontâneo.
“Tenho 31, mas a minha mãe... sabe como é...”
“Olha, avisa sua mãe que eu tomo conta de você, tá legal?”
“Ahn, sendo assim, anota aí o meu número.”

O dia 31 de outubro já passou e até hoje aguardo o telefonema de Alessandra. Naquela noite, ainda trocamos alguns comentários sobre os CDs, sobre aquele apartamento ancião e sobre a sua futura festa. Alessandra foi embora na hora do parabéns, lá pelas três da madrugada. Saiu de fininho, sem falar com ninguém. Nem comigo. Acho que deveria tê-la convidado para conhecer a minha coleção de selos. E deveria ter pedido o número do telefone dela, entre os goles na latinha de cerveja e as piadas duvidosas sobre o Halloween.

Zé McGill

* Por falar em Tim Maia, segue o link de um vídeo raro e foderoso do Síndico. (Atentem para a performance do percussionista, que recebe um santo no final do vídeo... ISSO É BRASIL!!)