Dizem que o Flamengo tem a maior torcida do Brasil porque as primeiras transmissões de jogos de futebol pela Rádio Nacional privilegiavam as partidas que envolvessem o time da Gávea, numa espécie de propaganda em massa. Dizem que o primeiro time do Rubro-Negro treinava na praia e que por isso teria conquistado o coração do povo. Dizem que a combinação das cores vermelha e preta é coisa do Demo. E dizem também que mulher que perde a virgindade antes do casamento vira mula-sem-cabeça e que de boas intenções o inferno está cheio. Dizem.
Nasci no estado do Oregon, nos Estados Unidos, e sei que a parcela gringa da minha família – por parte de mãe – não tem a menor idéia do que seja o esporte bretão. Eles até já ouviram falar em Pelé, mulatas e araras, mas futebol pra eles é aquele jogo em que um bando de trogloditas encapacetados se atracam na disputa por uma bola oval que não consegue rolar no gramado artificial. Meu falecido tio Harry era fã dos San Francisco 49ers. Aposto que ele morreu achando que a maior glória do esporte era o touchdown. Pobre tio Harry.
Quando desembarquei no Brasil, aos três meses de idade, meu avô paterno já fazia parte da diretoria do Flamengo. Por isso, durante muitos anos desfrutei de regalias que causariam inveja a qualquer torcedor mirim ou master: Entrei em campo de mãos dadas com o Zico, conheci a concentração dos jogadores em São Conrado e participei de correntes no vestiário antes dos jogos. Muitas vezes fui ao estádio no ônibus da delegação e uma vez voltei pra casa no carrão do técnico Vanderlei Luxemburgo, com ele ao volante e meu avô no banco do carona. A taça de um torneio carioca no meu colo.
Minha mãe conta que um dia, aos quatro anos de idade, acordei e fui dizer a ela o seguinte: “Mãe, eu não consigo tirar o Raul da cabeça!”. O ano era 1981 e suponho agora que o Raul, goleiro do Flamengo naquela época, tenha invadido meu sono pouco depois de 13 de dezembro daquele ano, data da maior conquista do clube: o título mundial no Japão. A senhora minha mãe afirma ainda que eu repetiria aquela frase pelos próximos dois dias. E, naturalmente, ficou preocupada. Uma criança naquela idade deveria soltar frases do tipo “Mãe, eu quero ir ao Tivoli Park!!” ou “Mãe, eu quero geléia de mocotó!”. No entanto, o que passava pela minha cabeça era a imagem do Raul com sua camisa amarela de número 1.
A minha primeira vez no Maracanã foi para assistir a um Flamengo e São Paulo, no ano seguinte. Não me recordo dos detalhes da partida, mas hoje sei que os paulistas ganhavam por dois a zero e que o Flamengo virou com gols de Zico, Andrade e Zico, nesta ordem. Me lembro que, no momento da virada, meu pai me levantou sobre a cabeça ao mesmo tempo em que soltava o grito alucinado de gol! Pela primeira vez senti a arquibancada tremer com os pulos e os urros da multidão. Ao nosso lado, um negão gordo e beiçudo babava e saltitava sem parar, sorrindo com a língua de fora. Acho que a baderna me deixou mais assustado que qualquer outra coisa, afinal eu mal completara meu quinto aniversário e ainda devia chupar chupetas. Mas aquele foi o meu batizado.
Naquele dia, sem perceber o que estava acontecendo, ingressei na ala infantil dos doentes mentais do manicômio vermelho e preto. Eu havia contraído uma doença incurável de sintomas peculiares que se manifestariam principalmente nas tardes de domingo pelo resto da minha vida. Não se tratava de nenhuma doença rara e nunca atingi sua fase terminal, ou seja, nunca passei a noite na fila da bilheteria de um estádio dormindo ao relento à espera de um ingresso, o que chega a ser comum entre os milhares de indivíduos infectados por tal enfermidade neste país. No meu caso, a bipolaridade sempre foi o maior efeito colateral da doença. Sua capacidade de estragar o meu dia (no caso de uma derrota) ou de me fazer feliz (nas vitórias) é impressionante.
Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra. Violentaram a frase dele e hoje em dia se diz que toda maioria é burra. Pois eu sou muito, muito burro então. Faço parte de uma maioria de quarenta milhões de fanáticos e não consigo encontrar uma explicação lógica para isso. Não sei como cheguei a este nível de burrice, talvez eu simplesmente não tenha nada melhor para fazer com o meu tempo, mas sei que ainda outro dia me flagrei desesperado dentro de um ônibus, preso no trânsito. Era dia de jogo e faltavam menos de dez minutos para o apito inicial. Buzinas berravam ao redor, a chuva desabava do céu e um mosquito azucrinava meu ouvido. Mas eu só conseguia pensar em chegar depressa em casa para me sentar na frente da televisão e ver o jogo.
Parei por um minuto e comecei a pensar no motivo daquela minha aflição irracional. Não acredito que minha paixão doentia pelo Flamengo se dê pelos motivos do meu currículo familiar. Meu irmão, por exemplo, passou por quase todas as experiências catequizadoras descritas acima e hoje em dia não sabe nem quem é o técnico da equipe. De certa forma, o invejo por isso. Ele não sofre como eu quando somos eliminados da Taça São Paulo de Futebol Júnior. Ele não briga com a mulher dele quando um timeco obscuro do Uruguai nos mete três a zero goela abaixo. Ele não caminha macambúzio e cabisbaixo pelas vielas desertas quando nosso time é derrotado.
Por outro lado, não sei se o meu irmão saboreou como eu aquele rompante de euforia que me acometeu quando o Renato Gaúcho arrancou do meio-de-campo com a bola dominada, passou pelo zagueiro e driblou o goleiro João Leite antes de tocar para o fundo da rede no mais incrível jogo de futebol que já assisti: Flamengo 3 x 2 Atlético Mineiro, semi-final da Copa União de 1987. Era o gol apoteótico de uma vitória inesquecível e eu extravasava a tensão que havia se apoderado do meu pequeno esqueleto de dez anos de idade me debatendo contra o chão da sala num misto de raiva e alegria.
Assim que aquele jogo terminou, a sensação era parecida com a do relaxamento que ocorre logo em seguida a um orgasmo. Tranquilidade absoluta e um prazer formigante na espinha. Talvez esteja escondido nesta sensação pós-vitória o motivo da minha tara pelo Flamengo. Talvez tudo não passe de uma busca frenética pela próxima dose de formigamento espinal. Talvez. Mas ali dentro do ônibus, vinte anos depois, nada desta baboseira subjetiva importava. Eu queria era chegar em casa o quanto antes e ligar a TV.
Quando o ônibus se livrou do engarrafamento, vi que ainda poderia chegar a tempo. Passaram-se mais alguns minutos e finalmente puxei a cordinha da campainha e a porta traseira daquela banheira motorizada se abriu. De repente, o Umbabarauma se libertou de dentro de mim. Eu já podia até escutar os acordes iniciais e a batida afro-samba-hardcore da música do Jorge Ben. Saí correndo e tropeçando pela calçada, o coração quase saindo pela boca. Mas tudo acabaria bem. Eu chegaria a tempo de ver Obina – a encarnação do ponta-de-lança africano idealizado pelo compositor - ajudar o time a vencer aquela batalha épica: Flamengo vs. Cardoso Moreira.
Zé McGill